Folha de S. Paulo


O autoengano petista: Parece que os corações valentes estavam vivendo em Marte

Se a indicação, para o Ministério da Fazenda, do "ortodoxo" Joaquim Levy, causou consternação entre petistas, a escolha, para a Agricultura, da senadora Kátia Abreu provocou revolta e ranger de dentes. Nas redes sociais, não foram poucos os entusiastas da candidatura Dilma que criticaram abertamente a decisão.

Nesse clima de "illusions perdues", houve até quem jogasse a toalha e se declarasse na oposição. Mesmo alguns analistas da grande imprensa, com experiência em bastidores e escaramuças políticas, mostraram-se decepcionados com o que teria sido uma incoerência da reeleita -ou uma "capitulação" ao mercado.

Pergunto: onde esses corações valentes estavam vivendo nos últimos anos? Em Marte, o Planeta Vermelho? Acreditaram nas mistificações de João Santana sobre banqueiros e executivos malvados do mercado que apoiavam Marina Silva e Aécio Neves e comeriam as criancinhas nordestinas? Como esperar uma "guinada à esquerda" de um governo enfiado até o pescoço em alianças -algumas nebulosas– com o establishment econômico e com o que há de mais atrasado na política institucional do país?

Faz tempo que o PT tornou-se o síndico do Centrão e deixou a retaguarda aberta para um novo partido de esquerda – que já é o PSOL. Será preciso lembrar que o vice-presidente da República se chama Michel Temer, que Edison Lobão é ministro das Minas e Energia, que o bispo Crivella já ocupou o primeiro escalão e que a nossa musa balzaquiana do agrobusiness é unha e carne com a presidente – uma tecnocrata "revolucionária" que veste sapatos Louis Vuitton?

O autoengano da militância petista -sempre inclinada a ver "tática" onde o que resta de estratégia, queira-se ou não, já se instaurou - chega a ser comovente em seu jeito pueril de avaliar a realidade política. Desde pelo menos a famosa Carta ao Povo Brasileiro, o PT -ao menos aquele em que Lula pontifica– tornou-se uma espécie de versão mais aguerrida e "social" do PSDB, partido com o qual, aliás, sempre manteve mais afinidades do que divergências.

Por razões de disputas políticas (e de afirmação ególatra), não raro paroquiais, essas siglas, que nasceram como duas faces de uma mesma moeda (a da hegemonia "esclarecida" de São Paulo nos anos pós-ditadura) procuraram e procuram realçar ao máximo suas diferenças. De tal modo que preferiram dar o braço a ACMs, Sarneys e Collors a buscar uma via mais curta e interessante para o entendimento e a governabilidade. Ou será que a distância entre FHC e Lula era mais longa do que aquela que separava cada um deles de ACM e Paulo Maluf? Lula, não esqueçamos, fez campanha para FHC ao Senado nos tempos do MDB.

Alçado ao poder, o PT manteve, afinal, as bases da política econômica do governo tucano, no qual Levy estreou como secretário-adjunto da Fazenda. Palocci, o ex-trotskista neoliberal- progressista, e Meirelles -um ex-banqueiro que se filiara ao PSDB-partiram da terraplanagem feita a duras penas pelo Plano Real, e a gestão lulista logrou, com medidas distributivas e boa dose de sorte com os ventos internacionais, dar um salto.

Lula, como se sabe, é um pragmático, um mediador, um espírito político forjado pela negociação com o capital em favor de melhores condições para a classe operária. Nunca desejou fazer revolução nenhuma, mas conseguir casa, comida, TV, Fusca e escola para os mais pobres. Sempre foi um agente da ascensão social.

A inclusão que promoveu durante seu governo foi antes pela via do mercado do que da cidadania: tratou-se ali de um segundo ciclo de integração de excluídos ao mundo do consumo, após o primeiro, marcado pela estabilidade e a bancarização dos pobres, propiciada pelo controle da hiperinflação.

O governo de Dilma Rousseff, personagem cheia de si e sabichona, mas com frágeis qualidades para assumir a Presidência, até que tentou avançar em mais um ciclo: se tudo desse certo, os juros cairiam a patamares mais civilizados -o que beneficiaria a indústria, as contas públicas e o consumidor– e o país minimizaria os efeitos danosos da crise mundial, preparando-se para uma nova etapa de crescimento.

Só que deu tudo errado. A aprendiz de feiticeira enfiou os pés pelas mãos, errou a mão no intervencionismo, na negociação política, nas mágicas contábeis e na equipe econômica, sem falar na má sorte de ver os ventos internacionais - em particular os orientais-mudarem de direção. Sim, manteve-se bom nível de emprego e renda -aspectos exaltados durante a campanha, mas que não resistiriam muito tempo mais ao desastre do desajuste fiscal, do baixíssimo crescimento (pior que o dos anos Collor e FHC) e da inflação em trajetória de alta.

Diante desse quadro, uma pessoa querida perguntou-me antes da eleição: você acha melhor o Aécio ou a Dilma? "Tanto faz", respondi, já impaciente e enjoado com a campanha. "Claro que seria muito saudável para todos o PT passar um tempo na oposição, mas a Dilma provavelmente vai ter melhores condições políticas para fazer o ajuste econômico que os petistas acreditam ser uma proposta equivocada do Aécio e dos neoliberais". Lula, que não é bobo e quer voltar (e aí o PT, definitivamente, viraria nossa versão do PRI mexicano), sabe que é preciso reconquistar a confiança dos investidores, dos mercados e da "zelite" -ainda mais num momento em que o Petrolão assombra 12 anos de governança petista.

Lula, era público, queria alguém do mercado na Fazenda –Trabuco, ao que parece, era seu predileto. Mas negou fogo. Levy vai na mesma linha, embora Armínio Fraga, com quem tem muitas afinidades, pareça mais sofisticado.

Quanto a Kátia Abreu... Bem, Dilma é um trator movido a diesel. Por que a surpresa?

Agora um pressentimento: são grandes as chances de que, após um período mais difícil de ajuste, acompanhado de gritaria da esquerda, a economia entre nos eixos e o país volte a crescer de maneira consistente – para deixar Lula (ou quem seja) na porta do gol.

Quanto às preocupações ambientais e com a mudança de modelo em favor da sustentabilidade... Bem, essa candidata era outra –e foi malhada por ser "amiga dos banqueiros" e mudar de opinião. Como diria o velho Paulo Francis, waaaaaallll...


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