Folha de S. Paulo


A 'brasilização' de Tio Sam

Já se identificou nos Estados Unidos um processo de mudanças sociais que poderia, com algumas cautelas, ser chamado de "brasilização": o declínio da tradicional hegemonia branca e a progressiva transformação da paisagem humana num mosaico multiétnico, cada vez mais miscigenado.

As conclusões do levantamento "A Próxima América", recentemente divulgado pelo instituto Pew, trouxeram novas projeções sobre as transformações em curso. Se em 1960, os brancos representavam 85% da população dos EUA, em 2060, negros, hispânicos, e asiáticos serão a maioria –e ocuparão uma fatia de quase 60% dos habitantes do país. Metade desse contingente será formado por hispânicos.

Se a diversificação étnica não implica, por si, a miscigenação, não há dúvida de que a torna mais propícia. Segundo o estudo, em 2010 os chamados casamentos "inter-raciais" já equivaliam a 15,5% das uniões –contra apenas 2,4%, em 1960.

Mudanças no perfil geracional também acontecerão e, somadas ao novo colorido demográfico, poderão colocar em evidência na agenda política temas tradicionalmente ligados aos programas progressistas –ou "liberais", como preferem os americanos. Entre eles, a legalização da maconha e do aborto.

Não são, porém, apenas questões de ordem moral ou comportamental, que tenderiam a emergir com mais vigor.

Em Nova York, um laboratório onde esse caldo já cozinhou (a cidade possui hoje uma população de 33% de brancos, seguida por 29% de hispânicos e 23% de negros), muito se discutiu sobre o assunto durante a eleição do democrata Bill De Blasio, no final do ano passado.

Na ocasião, citei na Folha um artigo do jornalista Thomas B. Edsall, para o "The New York Times" ("O Novo Populismo Urbano", 22/10/2013), no qual ele mencionava dados interessantes sobre as diferenças de percepção da esfera pública e dos deveres do Estado por latinos, negros e brancos.

Estudos eleitorais de um instituto ligado às universidades de Stanford e Michigan, mostraram que é dominante entre os dois primeiros grupos a ideia de que cabe ao governo zelar pela oferta de "trabalho e bom padrão de vida para todos".

A maior parte dos brancos, por sua vez, considera que o Estado não é diretamente responsável e deveria "simplesmente deixar que cada um um seguisse em frente por si próprio".

Não há dúvida que essas visões traduzem diferenças econômicas entre esses grupos no atual estágio da sociedade americana, mas certamente também refletem traços culturais históricos. Não é casual que prevalece entre brancos –diferentemente de negros e latinos– a perspectiva "fundadora", protestante e anglo-saxã, da valorização do indivíduo e da livre-inciativa em detrimento do Estado como ente provedor.

Também nesse sentido, as mutações em curso nos EUA, mais uma vez guardando-se as proporções, poderiam ser associadas ao rótulo da "brasilização" –com o paulatino deslocamento do eixo político da esfera do individualismo para uma agenda que pressione por mais Estado. E é o que de certa forma já está acontecendo, como bem sugere a eleição de Barack Obama –e a implantação de seu "Obamacare".


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