Folha de S. Paulo


É preciso cantar

No meio dessa polarização política e do debate acalorado dos últimos anos sinto falta de um componente fundamental: a música.

No século passado a música brasileira esteve presente nas principais questões do país. Na ditadura, por exemplo, as músicas de Chico Buarque, Caetano, Gil e muitos outros, eram denúncia, válvula de escape, grito guardado, mensagem cifrada, tudo ao mesmo tempo.

Débora Gonzalles /Editoria de Arte/Folhapress

Na década de 1980, na abertura democrática, Cazuza e Renato Russo colocavam o dedo na ferida com poesia e contundência.

E hoje?

Temos Racionais, Rappa, Emicida, Criolo. São artistas geniais, que se posicionam mais no seu lugar de fala (campo da denúncia com propriedade), mas que esse monstro invisível chamado "mercado" não deixa ganhar escala mais ampla, tocar nas rádios, ser cantado e decantado por todo o país.

O que se ouve por aí, nos grandes shows, nos programas de TV, nas rádios, faz parecer que o Brasil vive uma grande festa.

Cadê a música no debate?

Na bela definição de Millôr Fernandes, música é "arte que ataca pelas costas". Ela te pega sem que você possa olhar para ela e vai direto na alma. Costumo dizer que, como ator, tenho inveja dos cantores, porque ninguém sai de um espetáculo meu repetindo o texto pela rua, mas sai de um show cantando até em casa; e para alguém; e nos dias seguintes.

Talvez falte encontro, discussão. A Bossa Nova, por exemplo, nasceu numa época em que as pessoas tinham que se reunir para fazer música. Tinham que estar juntas no Villarino, no apartamento da Nara Leão. E aí, como não dava para mandar melodia por e-mail e receber letra por WhatsApp, o que era só música vai virando movimento, troca de ideias e mobilização.

E do debate surgiu a necessidade de subir o morro, e ir atrás de Zé Keti, e assim o movimento foi se renovando. Com a Tropicália também a coisa se deu no terreno do encontro, da troca, do querer expressar algo em conjunto. A presença física, a conversa, era parte de fazer música. E assim tudo ganhava concretude, conceito.

Não sei se essas ideias soltas fazem algum sentido. Sei que sinto falta da música deste tempo, que fale da nossa situação hoje. E nos ajude a sair dela.

Como disse Caetano dias atrás, ao ser proibido de fazer um show num acampamento de sem-teto: "e, mais do que nunca, é preciso cantar porque há muitas dificuldades".


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