Folha de S. Paulo


O perigo da 'plena liberdade científica'

Débora Gonzales/Folhapress
Ilustração Marcius Melhem 24.set.17

De toda a absurda decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, que permite a psicólogos promoverem reorientação sexual em gays, a parte que mais me causa arrepios é o uso desse argumento: "plena liberdade científica".

Já contei aqui há alguns domingos que tive uma bisavó gay. O que ainda não disse é que também tive um avô com transtornos mentais.

Minha bisavó, Eduarda, se uniu a outra mulher em 1937, há 80 anos. Ao contrário do que se possa imaginar, foi tratada com amor e respeito pela pequena cidade, que entendeu aquele amor, o aceitou e protegeu. Juntas criaram filhos, netos e bisnetos de Dona Eduarda. Viveram juntas por 42 anos, até a morte de Dona Olga.

Deixaram em todos que conviveram com elas uma lição de amor.

Nenhum psicólogo tentou curá-las; nenhum juiz sentenciou que isso seria possível. A vida seguiu e seguiu linda, sem ninguém exercer a "plena liberdade científica".

Já meu avô Christóvão, na década de 50 começou a ter alterações de comportamento e uma forte bipolaridade. Naquele mesmo período a doutora Nise da Silveira ainda estava começando seu trabalho de questionamento das práticas psiquiátricas. Essa contestação não alcançou os que cuidavam do meu avô.

Seu Christóvão foi submetido às técnicas em voga, sobretudo aos eletrochoques –a plena liberdade científica da época.

Nunca mais foi o mesmo. Suas ideias se desajustaram de vez, congelou num tipo de comportamento estranho, arredio, difícil de definir. E assumiu para si uma culpa profunda pelo que lhe havia acometido. A ponto de, ao acordar com raiva e vontade de bater nas filhas, pegar um ônibus e ir sozinho se internar para tomar eletrochoque.

Optou por ficar recluso, e no fim da vida suicidou-se. Como se vê, nunca se recuperou, não da doença, mas do seu tratamento.

Estão aí as duas situações, tão próximas de mim, mas tão distantes em seus resultados.

A minha bisavó foi "tratada" com carinho, respeito, dignidade, e a consequência foi só amor, para ela e para todos nós que vivemos em meio a essa linda história.

Já no cérebro do meu avô quiseram entrar. Graças à "plena liberdade científica" tentaram mudar seu comportamento à força. Deu no que deu: sofrimento, dor e morte.

"Plena liberdade científica". A forma mais perigosa de opressão acontece quando ela se apropria de símbolos democráticos, como a linda palavra "liberdade", usada neste caso no seu sentido oposto. Uma covardia.


Endereço da página: