Folha de S. Paulo


Campos, balões e cachoeiras

Débora Gonzales/Folhapress
Ilustração Marcius Melhem de 17.set.2017

Comprei um videokê. Não sabia muito sobre videokês, como, por exemplo, por que se escreve com "k". Aliás, isso eu continuo sem saber, mas aprendi a instalar o aparelho, comprar músicas, escolher o tom da canção, e outras funções menos importantes.

Adquiri essa invenção japonesa para atender a um desejo das minhas filhas, que tinham esse sonho de consumo. Mentira, isso foi o que eu disse aos amigos que foram à minha casa usar o novo brinquedo. Não deu pra sustentar essa versão quando 131 das 136 músicas que eu escolhi não tinham nada a ver com as meninas.

E lá fomos nós passar uma noite cantando diante de balões na Turquia, campos de trigo na Holanda e cachoeiras norueguesas. Por sinal, além do "k" do videokê, também ignoro porque temos que cantar olhando paisagens desertas.

Um videokê é muito revelador. Primeiro sobre o seu gosto musical. Descobri que minha rádio enguiçou por volta de 1988, quando Paralamas lançou "O Beco" e Barão Vermelho gravou "Pense e Dance". Invejosos dirão que meu repertório é velho. Eu chamo de clássico mesmo.

Outra revelação do videokê pode traumatizar os menos preparados ou com autoestima baixa. O videokê escancara o quão desafinado você é. Minha sorte é que eu já sabia.

Eu fiz musicais infantis no início dos anos 2000. Minha amiga e grande comediante Maria Clara Gueiros me batizou carinhosamente naquela época de "a pessoa mais desafinada do mundo". Repare que ela não disse "o homem" ou "o ator", pra ficar bem claro que eu ganharia de qualquer um, independente do gênero.

Pois bem, ter um videokê te coloca diante da sua verdade. Sim, porque quando eu vou a um show do Lulu Santos e canto todas as músicas, o que se ouve é apenas uma massa humana acompanhando um cara verdadeiramente profissional. Ninguém se ouve num show.

Ao dar play no videokê e cantar sem o Lulu Santos pra encobrir minha voz, é como se o Anjo Gabriel descesse à terra, se postasse diante de mim e dissesse: "Pare. Apenas pare." Músicas que eu passei 35 anos achando que sabia cantar foram destruídas por mim na primeira nota.

E isso me provoca uma nova revelação. Agora está claro porque cantamos diante de campos de trigo, cachoeiras e outras paisagens desertas. É para ter a sensação de que ninguém, absolutamente ninguém está ouvindo nossa profunda desafinação. Espertos esses japoneses.


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