Folha de S. Paulo


É uma pessoa dentro

"É uma pessoa dentro." Eu sabia que um dia ia ouvir essa frase. Mas não queria acreditar. Eu adiei o quanto pude esse momento. Eu lutei contra ele, mas não deu.

Foi num jantar. Manuela e Nina, oito anos, conversando sobre irmos à Disney. Ir à Disney puxou o papo sobre filas; filas puxou o papo sobre foto com o Mickey; foto com o Mickey puxou o papo sobre... "Vai ser legal encontrar o Mickey, né, Manu?". "Pai, o Mickey não existe de verdade. É uma pessoa dentro da roupa."

Simples assim. Os sonhos dela não pareceram se abalar muito. Os meus foram atropelados.

Ano passado eu consegui me salvar. "Pai, o Mickey não é de verdade, né? Não existe rato daquele tamanho." "E por que você acha que ele é famoso no mundo todo?"

Debora Gonzales/Editoria de Arte/Folhapress
Débora 23.jul.2017

Com esse raciocínio intrincado ganhei um ano a mais de fantasia. Agora tudo ia por água abaixo. Eu não tinha mais argumentos.

Até então sempre tinha me virado. Natal passado: "Pai, como o Papai Noel tá em todos os shoppings ao mesmo tempo?". "Esses são de mentirinha, pras crianças brincarem. O outro tá ocupado fazendo brinquedo lá no Polo Norte e não pode parar pra tirar foto."

Sempre fui tão atento à importância do lúdico, do mágico, que nem corrigia quando as meninas falavam errado, desde que a palavra inventada fosse muito mais legal que a verdadeira. Manuela chamava purpurina de "fofurina". Eu acho semanticamente mais adequado, e cogitei sugerir sua inclusão no dicionário como sinônimo.

Nina apontava pro céu e dizia "olha a lúvem". Por que dizer que é nuvem e correr o risco de ela olhar pro céu de outro jeito?

A gente quer proteger os filhos da realidade. Quer que eles acreditem num mundo inventado, puro, justo –onde os sonhos não morrem.

Por que expor as crianças a esse negócio perigoso chamado verdade? Deixa elas serem felizes. Nós sabemos como esse filme termina. Já moramos na fantasia e vimos no que deu nos mudarmos de lá.

Saber a realidades das coisas começa com a relação ator/Mickey e desemboca em Joesley/Temer, Léo Pinheiro/Lula. A verdade dói. A gente não quer isso pros nossos filhos.

Acho fundamental que elas não entendam como se rejeita um relatório na CCJ na base toma-lá-centenas-de-milhões-dá-cá-seu-voto.

E na boa: eu topo que elas não acreditem na existência do Papai Noel, desde que não saibam que o PMDB existe.


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