Folha de S. Paulo


Kkk ou rsrsrs?

Durante boa parte da minha vida invejei a habilidade de um tipo de pessoa em particular: o sanfoneiro.

Para mim, sempre foi o ápice da capacidade você usar a mão direita pra tocar piano com o teclado em pé, enquanto com a esquerda maneja 120 botões, sem esquecer o movimento de vaivém do fole. Isso tudo e ainda cantar "Asa Branca".

Nos últimos anos encontrei uma nova categoria de ser humano, mais admirável ainda pelo acúmulo de funções e habilidades, e que precisa subdividir o cérebro em muitas regiões pra dar conta das suas tarefas. Falo do superdotado que sabe gerenciar grupos de WhatsApp.

Débora Gonzales/Folhapress
Ilustração da coluna Marcius Melhem 11.jun
Ilustração da coluna Marcius Melhem 11.jun

Eu até conseguiria lidar bem com os milhões de variáveis sociais necessárias para existir no WhatsApp, desde que abrisse mão de viver. Até hoje resisti a fazer essa troca, mas venho reconsiderando, já que as pessoas parecem ter se mudado para o aplicativo. Chegará o dia em que a prefeitura cobrará IPTU do WhatsApp, baseado no metro quadrado de linhas de cada um.

Não sei lidar mesmo. Sou ausente no "grupo família", sem carisma no grupo "colégio" e pouco interativo no "trabalho", assim como no "panela do trabalho", e no "panela do trabalho menos o Sérgio, que é mala".

Não faço ideia de quando usar "kkk" em vez de "rsrsrsrs", não respondo a nenhum "bom dia, grupo", nunca mandei o "negão bem dotado" pra ninguém e não sei quando está na hora de mandar um gif ou um meme. Até outro dia eu nem sabia a diferença entre gif e meme.

Pra piorar meu calvário, inventaram o emoji. Não entendo metade daquelas carinhas, e não consegui achar ocasião específica para usar imagens como o unicórnio, a vela derretendo e a roupa de gueixa.

Sou capaz de romper uma amizade de infância se me enviarem um áudio com mais de um minuto e ainda marcarem meu nome com o emoji de dedo apontando para a mensagem.

Tenho crise de ansiedade quando lembro que aquele amigo que não respondi sabe que eu visualizei.

Sempre lidei com isso como se fosse um problema só meu. Mas há pouco tempo descobri que três amigos sofrem do mesmíssimo problema.

Conforta muito saber que você tem mais alguém com quem dividir essa total inadequação ao WhatsApp. Mostra que realmente você não precisa daquilo pra viver.

"É libertador", como disse um desses amigos ontem no grupo "a gente vive sem WhatsApp".


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