Folha de S. Paulo


Músicas de Chico Buarque ilustram nosso momento complicado

O cérebro faz associações que a gente não controla. E até por isso deve prestar atenção. Quando vi o foco que a imprensa deu à greve geral da semana passada, na hora me veio um trecho da música "Construção", de Chico Buarque.

"Morreu na contramão atrapalhando o tráfego."

Chico fez a inversão de importância como crítica, pra tocar na ferida. No caso da cobertura da greve, o dedo passou foi longe da ferida mesmo. A impressão é que a grande consequência de tudo aquilo foi atrapalhar o tráfego. Mas é disso que se trata quando pessoas saem às ruas em todo o Brasil?

Não sei o que Chico Buarque acha disso, mas sei que outras músicas dele poderiam –aí por associação voluntária– ilustrar nosso momento complicado.

A respeito de mensalões e petrolões, já vi usarem o trecho de "Vai Passar" que diz: "Dormia a nossa pátria mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações".

Sobre aquela votação no Congresso em que deputados aproveitaram a madrugada do acidente com o avião da Chapecoense pra desfigurar um pacote anticorrupção, "Cálice" iria bem: "Como é difícil acordar calado, se na calada da noite eu me dano".

A corrupção e a má gestão que devastaram economicamente o Rio de Janeiro poderiam desembocar no verso de "Futuros Amantes": "Quem sabe, então, o Rio será alguma cidade submersa".

Chico tem letras pra qualquer estratégia de defesa dos acusados de corrupção. "Todo o Sentimento" para os que não se assumem culpados ("onde não diremos nada, nada aconteceu") e "Anos Dourados" para os que resolvem delatar ("e deixo confissões no gravador")

A gafe mais recente de Temer, ao dizer que o Brasil precisa de um marido pouco tempo depois de reduzir a importância econômica das mulheres à sua presença nos supermercados, parece o verso de "Bom Conselho": "Aja duas vezes antes de pensar".

Voltando à greve geral, fiquei muito assustado com a quantidade de pessoas que usaram Chico pra gritar "Vai Trabalhar Vagabundo" a pessoas que exerciam seus direitos.

Se bem que isso soa até suave, perto da violência do cassetete no rosto daquele estudante de Goiânia, que se não estivesse sedado e em estado grave (até a hora em que entrego esta coluna), poderia dizer que estava ali porque "a gente quer ter voz ativa, no nosso destino mandar".

Realmente este é um país "que não tem conserto nem nunca terá".


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