Folha de S. Paulo


Matemática dos cassinos resolve muitos problemas práticos

Kin Cheung/Associated Press
Método de Monte Carlo é utilizado nas mais diversas situações
Método de Monte Carlo é utilizado nas mais diversas situações

Suponha a leitora que é proprietária de um terreno retangular com 80 metros de comprimento e 40 metros de largura. Aprendemos na escola que a área do retângulo é igual ao produto do comprimento pela largura: neste caso, 80 vezes 40 igual a 3200 metros quadrados.

Agora, nesse terreno há um lago, que valoriza a propriedade, pelo que seria útil conhecer a sua área também. O problema é que lagos costumam ter formas complicadas, muito diferentes daquelas que vimos na escola: fórmulas de área da aula de geometria não vão ajudar. Mas isso não quer dizer que a matemática não possa resolver o problema.

Aqui vai uma ideia um pouco mirabolante.

Pode-se experimentar lançar um monte de pedrinhas ao acaso em todo o terreno. Algumas cairão no lago e estarão perdidas.

Suponhamos que lance 1000 pedrinhas e ao final consiga recuperar 750, que caíram em terra. Então 250 pedrinhas, um quarto do total, terão caído no lago. Supondo que o lançamento realmente tenha sido ao acaso, isso sinalizaria que a área do lago é um quarto da área do terreno, ou seja, 3200/4 = 800 metros quadrados.

Certo, esta ideia não parece fácil de executar (nem muito ecológica). Mas com alguns ajustes é realmente possível transformá-la numa solução prática muito eficaz para o problema.

Por exemplo, no lugar de ir ao terreno, a leitora pode mandar fazer uma foto aérea, fornecê-la a um computador e fazer com que este simule o lançamento de pedrinhas, escolhendo 1000 pixels ao acaso na foto: se o pixel for azul então "a pedrinha caiu no lago".

Isso é um exemplo de uma técnica matemática chamada método de Monte Carlo, que hoje é utilizada nas mais diversas situações. Por exemplo, ela está na base do modo como o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) monitora o desmatamento da Amazônia a partir de fotos de satélite: queimadas podem ser identificadas pela mudança de cor e, apesar de terem formas complicadas, as suas áreas podem ser estimadas do jeito que descrevi.

A ideia geral do método de Monte Carlo é que mesmo questões que têm respostas determinísticas, dadas por fórmulas exatas, muitas vezes são mais fáceis de responder usando amostragem aleatória. Esse princípio foi descoberto na segunda metade dos anos 1940 por matemáticos trabalhando nas pesquisas secretas dos Estados Unidos para desenvolver armas nucleares.

Stanislaw Ulam (1909-1984) nasceu na Polônia e emigrou para os Estados Unidos em 1939, poucas semanas antes de Hitler invadir seu país. Quatro anos depois, integrou o Projeto Manhattan, a iniciativa do governo americano para construir a bomba atômica. Em 1946, voltou ao famoso laboratório de Los Alamos para trabalhar em outro projeto ultrassecreto: a bomba de hidrogênio.

Os cientistas precisavam conhecer a frequência de colisões dos nêutrons para chegarem à energia liberada em cada colisão. Os cálculos eram complicadíssimos, e fazer muita conta não era o estilo de Ulam. Nessa hora, lembrou de um problema que resolvera nas horas vagas.

Os aficionados pelo jogo Paciência sabem que, dependendo da ordenação inicial das cartas no baralho, pode ser impossível terminar a partida. O número total de ordenações é fácil de calcular: supondo que se use um baralho de 52 cartas, é 52! = 52 x 51 x 50 x x 2 x 1 (que chamamos "52 fatorial").

Ulam queria saber quantas dessas são favoráveis, ou seja, quantas permitem que a partida termine. Mas as contas eram complicadas e ele optou por um jeito mais prazeroso: jogou Paciência um monte de vezes, anotou a percentagem de partidas que conseguiu terminar e, multiplicando por 52 fatorial, obteve uma boa aproximação do número de ordenações favoráveis!

Ulam propôs essa ideia ao colega húngaro-americano John von Neumann (1903-1957), um dos matemáticos mais brilhantes do século 20.

Von Neumann percebeu imediatamente o enorme potencial da proposta e, com o físico greco-americano Nicholas Metropolis (1915-1999), desenvolveu um modo de utilizá-la para fazer as contas no computador programável que havia acabado de ser construído em Los Alamos.

Como a pesquisa era secreta, precisavam de um nome de código para o novo método. "Monte Carlo" foi sugestão de Metropolis, em homenagem ao famoso cassino do principado do Mônaco, onde um tio de Ulam "torrava" o dinheiro da família.

O método de Monte Carlo tem inúmeras aplicações nas mais diversas áreas de atividade. Por exemplo, quando a polícia calcula o número de pessoas num ato público –no Brasil pararam de fazê-lo parar evitar controvérsias com os organizadores– é claro que não é por meio de contagem. São usadas fotos aéreas e o método de Monte Carlo é usado para estimar o número de cabeças.

Anos atrás, durante o meu pós-doutorado na universidade de Groningen, na Holanda, assisti a uma palestra onde a mesma ideia era usada para calcular as populações de tatuís nas praias do país, sem ter que incomodar os bichinhos para contá-los: os pesquisadores aplicavam o método de Monte Carlo a partir do número de furinhos que os tatuís fazem na areia.

Para dar certo, o método de Monte Carlo tem dois requisitos. A amostragem –o número de "pedrinhas"– precisa ser bastante grande e precisa ser genuinamente aleatória: as "pedrinhas" têm que estar bem distribuídas. Isto era um problema nos anos 1940, porque não se conheciam bons métodos para simular números aleatórios em computador.

A ideia de fazer essa simulação ao vivo, com um monte de pessoas jogando moedas e dados, não era praticável, pelo que von Neumann teve que trapacear, lançando mão de números "pseudo-aleatórios". Apesar do grande avanço alcançado desde então, este continua sendo um tema de pesquisa muito ativo.

Para encerrar, deu para notar que todos os heróis da história de hoje eram americanos, sem que nenhum tivesse nascido nos Estados Unidos? É o resultado de uma política inteligente para atrair os melhores cérebros do planeta, que eles mantêm até hoje. Em prejuízo daqueles, como nós, que ainda precisam aprender essa lição.


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