Folha de S. Paulo


Matemáticos ajudaram a ganhar a batalha do Atlântico

Detesto admitir, mas matemáticos não costumam ser pop. Atores, esportistas, cantores, líderes religiosos, até alguns políticos o são, mas, para os matemáticos, é muito mais difícil que se tornem conhecidos e apreciados pelo grande público. No entanto, há exceções.

As crianças francesas do início do século 20 colecionavam figurinhas de celebridades da época, entre as quais Henri Poincaré. Vinham nas caixas de chocolate Guérin-Boutron e o grande matemático era a figurinha 469. É comovente imaginar as negociações ansiosas no recreio da escola: "Você tem o Poincaré? Dou o almirante Makaroff e dois reis da Inglaterra pelo Poincaré!".

Divulgação
Henri Poincaré
Figurinha de Henri Poincaré, de número 469

É difícil conceber isso nestes nossos dias de Neymar e Cristiano Ronaldo

Os outros exemplos que vêm à mente são figuras cuja trajetória de vida foi marcada pela tragédia. O genial matemático indiano Ramanujan (1887-1920), protagonista do filme "O Homem que viu o Infinito", morto aos 32 anos na sequência de problemas de saúde que o perseguiram durante toda a vida e que estavam muito ligados à pobreza.

Outro é o americano John Nash (1928-2015), matemático, economista, pioneiro da teoria dos jogos e celebrizado pelo filme de grande circulação "Uma Mente Brilhante". A pesquisa notável, o drama da loucura, a incrível cura, e o trágico acidente que causou a sua morte e de sua esposa. Tudo compõe uma história além do que a ficção poderia ter concebido.

Na época do filme, o jornal "Corriere della Sera" perguntou a um colega italiano se a matemática poderia ter contribuído para a loucura de Nash, ao que ele respondeu que sim. Quando questionei se ele acreditava mesmo nisso, o colega matemático respondeu: "Claro que não. Mas o jornalista acreditava e ficaria desapontado se eu respondesse outra coisa."

Outro matemático conhecido do grande público é o inglês Alan Turing (1912-1954), considerado o criador da ciência da computação e da inteligência artificial. Em seu trabalho "On computable numbers, with an application to the Entscheidungs problem" (em tradução livre: "Sobre os números calculáveis, com uma aplicação ao Problema da Decisão"), publicado em 1936, propôs um modelo simples –que atualmente chamamos "máquina de Turing universal"– e mostrou que tal máquina poderia calcular tudo o que um ser humano pode calcular.

Os primeiros computadores modernos (programáveis) foram construídos uma década depois, com base nas ideias de Turing.

Foi com essas credenciais que Turing foi convocado às instalações do serviço secreto britânico em Bletchley Park, em 1938, para participar na tentativa de quebrar o código Enigma, usado pelas forças armadas alemãs, especialmente a Marinha, em suas comunicações secretas. Esse importante episódio da história da Segunda Guerra Mundial é tratado em diversos filmes recentes: "U-571", "Enigma" e "Jogo de Imitação" –mais recente e que destaca o papel de Turing.

Vamos deixar bem claro: esses filmes estão cheios de erros históricos e omissões tendenciosas.

Não foram os britânicos os primeiros a quebrar o código Enigma: foram os poloneses que, inclusive, construíram uma cópia da máquina codificadora Enigma e a forneceram ao serviço secreto britânico depois que a Polônia foi ocupada pela Alemanha e pela União Soviética. Quando os alemães substituíram por uma máquina mais complicada, o trabalho do serviço secreto polonês deixou de ser suficiente, mas continuou sendo extremamente útil.

E o Enigma não foi o único código importante quebrado na guerra: o matemático sueco Arne Beurling (1905-1986) quebrou o código Geheimfernschreiber, considerado ainda mais complicado que o Enigma, e foi assim que o serviço secreto sueco ficou sabendo com antecedência da operação Barbarossa, o plano dos alemães para invadir a União Soviética. Apesar de oficialmente neutros, os suecos repassavam informações aos aliados. Mas o líder soviético Stalin recusou-se a acreditar que o amigo Hitler se voltaria contra ele, e não preparou o seu país para a invasão.

Além disso, todo o brilhante trabalho dos matemáticos em volta de Turing teria sido em vão se não fosse o heroísmo dos marinheiros britânicos (e não americanos, como quer nos fazer crer o filme "U-571") que caçavam submarinos alemães para confiscar máquinas Enigma e livros de códigos, necessários para recalibrar a decodificação a cada vez que os alemães mudavam as configurações das máquinas. A tarefa era perigosíssima, pois os oficiais alemães tinham ordens de afundar as embarcações com todo mundo dentro, em caso de captura: mais de um bravo marujo britânico afundou junto em sua tentativa heroica de coletar o material.

Dito tudo isto, Turing realmente revolucionou o ataque ao problema do Enigma. Uma das suas maiores contribuições foi uma máquina eletromecânica chamada "bombe" que permitia analisar rapidamente as possíveis configurações da máquina Enigma usadas pelos alemães. Isto era crucial para poder interpretar as mensagens enquanto as informações ainda eram úteis, pois os alemães mudavam as configurações o tempo todo.

A descoberta do código Enigma foi importantíssima para neutralizar a ameaça dos submarinos alemães, contribuindo para a virada da batalha do Atlântico em favor dos aliados e salvando milhares de vidas. Entre elas, as vidas de muitos brasileiros: entre maio de 1942 e julho de 1944 os submarinos alemães afundaram 31 navios com a nossa bandeira, causando mais de 1.050 mortes, o que obrigou o governo Vargas a declarar guerra à Alemanha nazista.

A condição de cientista respeitado e herói de guerra não livraria Turing das amarguras que a vida lhe reservara. Condenado por "atos homossexuais" em 1952, Turing aceitou um "tratamento" de castração química para evitar a prisão. Cometeu suicídio por envenenamento dois anos depois, dias antes do seu 42° aniversário.

Em 2009, o governo britânico apresentou desculpas formais e a condenação de 1952 foi anulada pela rainha Elizabeth em 2013.


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