Folha de S. Paulo


Paradoxos estão por toda parte

Bassano/Wikimedia Commons
Bertrand Russell (1872 - 1970), ganhador do Nobel de Literatura em 1950
Bertrand Russell (1872 - 1970), ganhador do Nobel de Literatura em 1950

A frase "Estou mentindo", numa coluna anterior, intrigou muitos leitores. Se a pessoa estiver realmente mentindo então a frase é verdadeira, ou seja, a pessoa não está mentindo. Se a pessoa não estiver mentindo então a frase é falsa, ou seja, a pessoa está mentindo. Então, é verdadeira ou é falsa? 

Muitos leitores escreveram que é um paradoxo, mas sem explicarem o que significa. Na verdade, não é fácil explicar, até porque há muitos tipos. Neste caso, trata-se de um paradoxo lógico. Nos nossos raciocínios habituais usamos uma lógica baseada em duas regras: terceiro excluído –toda afirmação é verdadeira ou falsa– e não contradição â€“uma afirmação não pode ser, ao mesmo tempo, verdadeira e falsa. Já a frase "Estou mentindo", ou é simultaneamente verdadeira e falsa, ou não é nem uma coisa nem outra. 

Isso mostra que o autor da frase, o Líder Supremo dos Gödelianos de X314 (citado em coluna anterior), não segue as regras da lógica e, portanto, é um Doido. Sorte que é só no planeta deles que o líder supremo é doido! 

Neste exemplo, o paradoxo lógico resulta de que a frase contém uma autorreferência: ela fala sobre si mesma. Essa é uma ideia muita antiga, remonta pelo menos à Grécia antiga, e admite muitas variações. "Esta frase contradiz a si mesma, só que não!" O comandante no quartel: "Não faça o que eu estou mandando!" Ou até em duplas: "A próxima frase é falsa. A frase anterior é verdadeira."  

Uma aplicação séria da autorreferência é o paradoxo de Russel, formulado pelo matemático, filósofo e escritor britânico Bertrand Russell (1872 - 1970), ganhador do Prêmio Nobel de literatura em 1950. Visando resolver as contradições da teoria matemática dos conjuntos, Russel propôs considerar o "conjunto de todos os conjuntos que não são membros de si mesmos". A questão de saber se esse conjunto é membro de si mesmo ou não leva ao mesmo tipo de dificuldade que encontramos antes com "Estou mentindo". A conclusão de Russel é que temos que ser muito mais cuidadosos no modo como definimos um conjunto, para evitar autorreferências. 

O matemático austríaco Kurt Gödel (1906 - 1978) fez um uso ainda mais importante da mesma ideia para provar, em 1931, um teorema espetacular: a matemática ou é contraditória –significando que existem afirmações falsas que podem ser demonstradas matematicamente– ou é incompleta –existem afirmações verdadeiras que não podem ser demonstradas. A demonstração rigorosa desse teorema é bem sutil, mas a ideia pode ser explicada em poucas palavras.

Gödel mostrou que é possível escrever uma expressão matemática que significa "Eu não posso ser demonstrada". Se ela puder ser demonstrada então ela é falsa: é a primeira alternativa do teorema. Caso contrário, ela é verdadeira e estamos na segunda alternativa do teorema.

Gödel também provou que não é possível decidir matematicamente entre as duas possibilidades, contradição ou incompletude. Na verdade, ninguém acredita que a matemática seja contraditória, pelo que somos obrigados a aceitar que ela é incompleta: nem tudo que é verdade pode ser demonstrado matematicamente! Mas isso não é um fato isolado da matemática, existem paralelos em outras disciplinas. Os mais importantes são o princípio da incerteza de Heisenberg, na mecânica quântica, e o teorema de Arrow, na teoria da decisão. Espero poder falar sobre eles aqui um dia. 

Mas o que é um paradoxo afinal? A Wikipédia define como "declaração aparentemente/verdadeira, mas que leva a uma/contradição/lógica, ou a uma situação que contradiz a intuição comum". Na linguagem usual usamos a palavra em sentido mais amplo: por vezes apenas parece haver contradição, ela resulta de suposições preconcebidas e não explicitadas.

Um dos meus exemplos favoritos é o seguinte. Há um acidente muito sério na estrada envolvendo duas pessoas. O pai morre na hora, o filho é levado em estado grave para o hospital. Quando chega ao bloco operatório, o chefe dos cirurgiões exclama: "Eu não posso operar esse rapaz, ele é meu filho!" Como pode ser, se o pai morreu no acidente?! Resposta: o chefe dos cirurgiões é mulher... 

Mas há paradoxos para todos os gostos e em todos os domínios. São uma fonte inesgotável de encantamento e um instrumento para aprimoramos o raciocínio. No direito: se o Supremo Tribunal Federal for processado por uma ação ilegal, a quem cabe dar a sentença final? Na política: como a descoberta de uma grande riqueza, por exemplo, petróleo pode levar um país à miséria? Na teologia: se existe um ser que tudo sabe, como podemos ter livre arbítrio? No urbanismo: porque a abertura de uma nova rua pode piorar o trânsito? Nas viagens no tempo: o filme "O Predestinado" dá um exemplo espetacular.  

Até na matemática, claro. Um dos meus preferidos é a demonstração matemática de que eu sou o Líder Supremo! Considere dois números iguais x e y. Multiplicando os dois lados da igualdade x = y por x obtemos x² = yx. Subtraindo y² dos dois lados, x² - y² = yx - y². Fatorando, (x + y)(x - y) = y(x - y). Removendo o fator comum (x - y), vem que x + y = y. Como x e y são iguais, segue que y + y = y, ou seja, 2y = y. Removendo novamente o fator comum y, obtemos 2 = 1. Então, o Líder Supremo e eu, que somos duas pessoas, somos uma pessoa só. Demonstrado! 

Caro leitor, cara leitora, com sinceridade: será que eu estou ficando doido? Respostas são bem vindas pelo email viana.folhasp@gmail.com.


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