Folha de S. Paulo


A escola e seus problemas começaram há milênios

Andrew Kuchling/Flickr
Tábua suméria
Tábua suméria

A civilização da Suméria prosperou no terceiro milênio a.C. na região da Mesopotâmia, onde agora é o sul do Iraque. Entre os seus grandes centros estava, por exemplo, a cidade de Ur, de onde sairia muito mais tarde o patriarca bíblico Abraão para dar início à saga dos hebreus. Há consenso de que os sumérios foram os primeiros inventores da escrita, cerca de 3.300 a.C.. Foi tal o brilho da Suméria que, muitos séculos depois de sua língua ter deixado de ser falada, continuou sendo usada por acadianos, assírios e babilônios como idioma de prestígio, da ciência, do direito e da diplomacia, um pouco como aconteceu com o latim na Idade Média europeia.

Mas a poeira do tempo tudo cobriu, e os sumérios foram esquecidos. Sua existência foi redescoberta no século 19. Primeiro de forma indireta, a partir do estudo das línguas dos sucessores mesopotâmicos –um pouco como o planeta Netuno foi encontrado a partir do seu efeito no movimento de outros planetas. Depois, a partir de 1880, escavações arqueológicas trouxeram à luz dezenas de milhares de documentos (tábuas de argila e inscrições em monumentos), que comprovaram não só a existência dos sumérios como a antiguidade de sua escrita.

A escrita suméria é muito complicada, mas foi possível decifrá-la, na primeira metade do século 20. E então os documentos escavados revelaram um tesouro de informações sobre este povo extraordinário que viveu há cinco milênios. Poemas escritos mil anos antes da Bíblia e da Ilíada de Homero atestam que uma literatura rica e criativa surgiu na alvorada da História. Uma das tábuas de argila mais famosas contém o primeiro relato escrito da arca de Noé, e há muitos outros paralelos com a Bíblia. Através dos séculos, os textos escritos pelos sumérios nos falam do seu dia a dia, seus governantes, sua mentalidade, seus sentimentos, sua visão do mundo e... seu sistema educacional.

As escolas sumérias nasceram da necessidade de ensinar a escrita aos jovens que trabalhariam na administração do palácio real e do templo, as duas grandes fontes de poder. Mas muitas outras matérias foram ensinadas, como teologia, matemática, geografia, zoologia, botânica, geologia, gramática e linguística. As escolas se converteram em algo parecido com centros de pesquisa e de criação literária.

Ao que sabemos, o ensino era pago e, portanto, estava essencialmente restrito aos filhos dos mais poderosos. Homens apenas. À frente da escola estava um professor, auxiliado por alguns assistentes: "encarregado do sumério", "encarregado do desenho", não sabemos se havia um "encarregado da matemática". Mas diversos documentos permitem entender os conteúdos curriculares da matemática e demais disciplinas. O horário era integral: o aluno entrava na escola ao amanhecer e saía ao pôr-do-sol. A aprendizagem era baseada na repetição e memorização. Quanto ao método pedagógico, bastará dizer que um dos assistentes era o "encarregado do chicote"...

Na verdade, professores e assistentes eram mal pagos e, naturalmente, viviam com fome e mal-humorados –o que os tornava ainda mais propensos ao uso do chicote. Numa das tábuas de argila encontradas, um estudante, cansado de apanhar, suplica aos pais que convidem o professor para jantar em casa, sirvam uma boa refeição e lhe deem de presente uma túnica nova, para que fique feliz com o desempenho do infeliz aluno na escola. É provavelmente o primeiro caso (documentado) de tentativa de corrupção na história.

Em comentário a esta coluna, uma professora afirmou que "É fácil falar como deve ser a educação, mas tem que ver como vivem os professores. Além disso, hoje em dia os alunos não querem aprender". Talvez ela ficasse surpresa em saber que sua queixa é do tempo dos sumérios.

Em outro documento escavado por lá, um pai se aflige com o filho que não se esforça para aprender, não vai à escola e pensa apenas em se divertir, vagabundear pelas ruas em bando e destruir os jardins públicos. Com muito sacrifício, o pai paga a escola do filho em vez de destiná-lo a trabalhos pesados, como os outros jovens. E desespera-se com a possibilidade de o herdeiro ingrato desperdiçar a oportunidade oferecida.

Evoluímos um pouco na organização escolar e nos métodos pedagógicos –afinal, o chicote e a palmatória foram banidos da sala de aula há algumas décadas–, mas não tanto quanto precisamos: em quantas escolas a repetição e memorização continuam sendo as principais técnicas didáticas?

Já a natureza humana, essa não mudou nada em cinco milênios.


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