Folha de S. Paulo


Elon Lages Lima foi o matemático que amava os livros

Impa/Divulgação
O alagoano Elon Lages Lima, professor do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada)
O alagoano Elon Lages Lima, professor do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada)

Conheci Elon Lages Lima primeiro por seus livros, nos meus tempos de aluno de graduação na Universidade do Porto. Um dos meus favoritos era "Espaços Métricos": difícil para um aluno do segundo ano do bacharelado, mas cheio de maravilhas matemáticas. Um par de anos depois conheci "Grupo Fundamental e Espaços de Recobrimento", e o conjunto dos meus livros favoritos aumentou. Elon escrevia com cuidado, aparente facilidade, sem fugir das dificuldades e, ao mesmo tempo, sem perder a elegância jamais.

Alguns anos mais e tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o autor dos livros quando ingressei no doutorado do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). Aproximou-nos, além da matemática, o gosto comum pela língua portuguesa e o prazer que Elon tinha em falar da "terrinha".

Lembro do orgulho divertido com que me mostrou uma foto sua ao lado de uma placa de trânsito com a indicação Lima (seu sobrenome): o rio Lima, no norte de Portugal, de cujas margens emigraram para o Nordeste brasileiro alguns de seus ancestrais.

Foi um dos matemáticos mais influentes que o Brasil já produziu. Pesquisador, dirigente, professor, autor, didata e mentor de jovens talentosos. Domingo passado, Elon Lages Lima morreu no Rio de Janeiro, aos 87 anos. Deixa uma marca importante na história do Impa e de toda a matemática brasileira. Manifestações de pesar têm chegado até nós de todas as partes do país e do exterior: Espanha, Portugal e muitos países da América Latina.

O presidente da Real Sociedad Matemática Española transmite suas "más sinceras condolencias por la pérdida de un insigne docente, investigador y emprendedor que ha contribuido al fortalecimiento de la comunidad matemática de Brasil".

Nossos colegas da Sociedade Portuguesa de Matemática escrevem: "O trabalho e o exemplo do professor Elon Lages Lima tiveram uma profunda repercussão no nosso país. As suas obras didáticas de matemática avançada permitiram, como poucos matemáticos conseguiram, a criação de uma literatura matemática em português, com rigor tanto conceitual como no uso –e mesmo na criação de novos termos– de nossa língua comum."

Muito haverá ainda de ser escrito sobre seu pioneirismo e suas contribuições, mas não é essa a minha ambição aqui: apenas compartilho reminiscências e impressões pessoais.

O rigor, na matemática e no idioma, era realmente prioritário no modo como Elon escrevia e, embora pudesse ser um pouco dogmático, estava quase sempre certo. Dessa forma, exerceu grande influência sobre outros autores brasileiros. Uma superfície de mais que duas dimensões é chamada "hypersurface", em inglês. É usual traduzir para hipersuperfície, mas o exagero de escrever "hiper-super" repugnava Elon: nos seus livros sempre optou pelo neologismo hiperfície, que ele mesmo criou. Nesse particular não conseguiu convencer os colegas, mas nunca desistiu de tentar.

Em um de seus livros, Elon aborda dois conceitos matemáticos designados em inglês pelas palavras "immersion" e "embedding", que nunca antes haviam sido tratados numa obra em português. A tradução da primeira palavra é clara (imersão), mas a segunda é mais complicada. No lugar de fugir da questão, Elon buscou cuidadosamente na nossa língua uma palavra adequada, acabando por optar por mergulho (sem dúvida, motivado pelo francês "plongement"). Na época, isso provocou comentários sarcásticos do tipo "esses cariocas só pensam em praia mesmo". Mas, hoje em dia, matemáticos dos dois lados do Atlântico usam a palavra mergulho com toda a naturalidade, sem terem consciência de que ela foi "inventada" por Elon.

Já contei aqui como, ao final dos anos 1950, na Universidade de Chicago, Elon conheceu e tornou-se amigo do matemático americano Steve Smale. Elon apresentou Smale ao colega Maurício Peixoto e também o convidou a visitar o Brasil. Para Smale, a visita rendeu trabalhos científicos pelos quais foi distinguido alguns anos depois com a medalha Fields –maior premiação da matemática.

Também conheceu aqui aquele que seria seu primeiro estudante de doutorado: Jacob Palis. E nesse tecido de relações pessoais, das quais Elon foi o catalizador, estava nascendo uma das páginas mais brilhantes e duradouras da ciência brasileira.

Encerro falando mais uma vez de livros. Por décadas, Elon cuidou com enlevo da biblioteca do Impa, ajudando a torná-la uma das melhores do mundo em matemática.

Sabendo do seu amor pelos livros, um amigo comum, espanhol, deu a Elon muitos anos atrás um presente que ele prezava muito: um fac-símile do ameaçador regulamento medieval da biblioteca da Universidade de Salamanca, a mais velha da Península Ibérica. "Será excomungada toda pessoa que roubar ou danificar algum livro ou pergaminho desta biblioteca". Elon prendeu o cartão na entrada da nossa biblioteca, e continua lá.

O aviso em espanhol antigo mais parece hoje um alerta bem-humorado aos visitantes. Como os livros de Elon, vai à essência da questão, de forma direta, e todos entendem.

Impa/Divulgação
O aviso em espanhol
O aviso em espanhol

Endereço da página:

Links no texto: