Folha de S. Paulo


Quando um planeta foi descoberto na ponta de uma caneta

NASA
Kepler fez no século 17 três leis matemáticas que descrevem o movimento dos planetas em torno do Sol
Kepler fez no século 17 três leis matemáticas que descrevem o movimento dos planetas ao redor do Sol

O movimento dos astros nos céus é um dos enigmas mais antigos e intrigantes na história da humanidade. Mesopotâmicos, egípcios, chineses, persas, gregos, maias, todas as grandes civilizações do passado buscaram dar um sentido a esse movimento, entender e prever a evolução do firmamento. Quase sempre apelando para a religião e o misticismo, na falta de outros instrumentos.

Na Idade Média europeia, as esporádicas visitas de cometas eram vistas como prenúncio de desgraças. Com o Renascimento, vem um passo fundamental: o abandono da hipótese geocêntrica –a ideia de que os corpos celestes giram em torno da Terra– em proveito da heliocêntrica, que afirma que os planetas, incluindo a Terra, giram em torno do Sol. Não que a segunda fosse mais correta que a primeira (não é!): mas torna as equações dos movimentos celestes mais simples e, por isso, mais transparentes para serem entendidas. Assim, a contribuição de Nicolau Copérnico, Giordano Bruno e Galileo Galilei não é tanto a de descobrir "a verdade" e sim a de facilitar o caminho para uma melhor compreensão do universo.

Com base na enorme quantidade de observações realizadas por Tycho Brahe, seu discípulo Johannes Kepler formula no início do século 17 três leis matemáticas, que descrevem o movimento dos planetas em torno do Sol. As trajetórias são elipses, parábolas ou hipérboles, e não círculos como preconizara o grego Ptolomeu no século 2.

Em seguida, vêm duas descobertas extraordinárias, ambas ligadas ao grande Isaac Newton: a lei da gravitação universal ("Philosophiae naturalis principia mathematica", publicado em 1687) e o cálculo matemático ("Methodus fluxionum et serierum infinitarum", redigido em 1671 mas só publicado em 1736). A partir daí, uma única equação, amparada pelas poderosas ferramentas do cálculo, permite descrever e prever de modo preciso o movimento dos diferentes corpos celestes. O céu funciona como um relógio matemático!

É verdade que a equação da gravitação é difícil, muito mesmo. Mas os matemáticos dos séculos 18 e 19 –especialmente Joseph-Louis Lagrange, Pierre-Simon Laplace e Urbain Le Verrier– desenvolveram métodos para resolvê-la com grande precisão. Atualmente, com os refinamentos introduzidos pela gravitação relativística de Albert Einstein e a potência dos computadores modernos, podemos simular a evolução do nosso sistema solar ao longo de períodos de bilhões de anos.

Mas o triunfo mais espetacular da matemática no domínio da astronomia continua sendo a descoberta do planeta Netuno. Os astrônomos (e os astrólogos) antigos só conheciam seis planetas, de Mercúrio a Saturno. Urano foi descoberto em 1781 pelo astrônomo britânico William Herschel, observando diretamente o céu. Algumas décadas depois, os dados acumulados já mostravam que Urano não se movimentava como previsto pela lei da gravitação. Foi sugerido que isso seria devido à presença de outro planeta, até então desconhecido.

Por dois anos, Le Verrier fez os cálculos (complicadíssimos!) para determinar a localização desse misterioso planeta a partir do efeito que causava em Urano. Enviou as coordenadas ao astrônomo alemão Johann Galle, que, na noite de 23 de setembro de 1846, observou o planeta no exato lugar apontado pelo matemático francês! François Arago, diretor do Observatório de Paris, escreveu orgulhoso: "Le Verrier descobriu um novo astro sem precisar olhar uma única vez para o céu; ele o viu na ponta de sua caneta".

Lamentavelmente, a descoberta causou mal-estar do outro lado do Canal da Mancha. O britânico John Adams também vinha fazendo esses cálculos. Muitos acusaram (injustamente, ao que tudo indica) o astrônomo real Sir George Airy de não ter reagido com a devida prontidão ao trabalho de Adams, dando à França a chance de derrotar a Inglaterra numa questão tão importante. Um lado bom da história é que a disputa nacionalista não contaminou as relações pessoais: Le Verrier e Adams se encontraram pessoalmente no ano seguinte e se tornaram bons amigos.

Um efeito colateral destes avanços é que os astrólogos acrescentaram Urano, Netuno e, depois, Plutão à lista de planetas em seus mapas astrais (suponho que Plutão esteja sendo retirado, face ao desprestígio que constituiu a sua reclassificação como planeta anão). Não tenho ideia se esses ajustes tornaram a indústria dos horóscopos mais precisa. Afinal, atribuem ao sarcástico filósofo francês Voltaire a afirmação de que "é muito difícil fazer previsões, ainda mais sobre o futuro".

A não ser que você saiba matemática, évidemment!, poderia dizer Le Verrier.


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