Folha de S. Paulo


Descobertas matemáticas nas praias do Rio

Quando o matemático americano Steve Smale comprou um iate, nos anos 1980, seu primeiro passeio não foi uma volta perto de casa, em Los Angeles, para ganhar traquejo. Saiu em um cruzeiro de milhares de milhas até o Pacífico Sul, na companhia de dois amigos, um deles o saudoso Welington de Melo. De volta à Califórnia, vendeu o iate e nunca mais velejou: o que mais se pode fazer depois de cruzar o maior oceano do planeta?

Esse é também o jeito como Smale faz matemática: visa o grande objetivo, prova o teorema (quase sempre) e passa para outro tema, bem diferente. Desta forma, já deu contribuições importantíssimas em topologia, sistemas dinâmicos, economia matemática, análise global, mecânica, teoria dos circuitos elétricos, programação matemática e teoria da computação.

Em sua tese, em 1956 na Universidade de Michigan, Smale provou o fato surpreendente de que é possível virar uma esfera do avesso sem rasgá-la nem furá-la. Em seguida, começou a trabalhar em um dos problemas mais famosos de toda a matemática, a Conjectura de Poincaré, que define o que é uma esfera. Muitos haviam atacado o problema sem sucesso desde sua formulação pelo grande matemático francês Henri Poincaré, na virada do século 1920.

George M. Bergman/MFO
O matemático americano Steve Smale
O matemático americano Steve Smale, hoje com 86 anos e pesquisador honorário do Impa

Por essa altura, Smale se tornou amigo do então jovem pesquisador brasileiro Elon Lages Lima, que fazia o doutorado na Universidade de Chicago. Elon apresentou-o ao compatriota Maurício Peixoto, um dos fundadores do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), e convidou Smale a visitar o Brasil.

Em 1960, Smale e família chegaram ao Rio de Janeiro, onde ficaram hospedados em Copacabana. Em seu "escritório na praia", entre mergulhos e muitos "jacarés" (body surfing), Smale encontrou a solução da Conjectura de Poincaré para as dimensões maiores que 4. Embora Poincaré tivesse em mente esferas de dimensão 3, a originalidade da abordagem de Smale foi considerar a questão em dimensões maiores (onde deveria ser mais difícil!) e resolvê-la. A pergunta original de Poincaré só foi resolvida em 2003, pelo russo Grigory Perelman.

Ainda em Copacabana, Smale descobriu um objeto matemático que chamou de "ferradura" e que está na base da teoria moderna dos sistemas dinâmicos, ou teoria do caos. Duas descobertas matemáticas espetaculares, ambas feitas nas praias do Rio!

Por seu trabalho na Conjectura de Poincaré, Smale ganharia a Medalha Fields –maior distinção da matemática– em 1966. Nesse ano, o Congresso Internacional de Matemáticos –onde a medalha é entregue– seria em Moscou. Nos Estados Unidos, a controvérsia sobre a Guerra do Vietnam pegava fogo e Smale, muito ativo em política, tinha posição destacada nos protestos, o que o fez ser intimado a depor perante o Committee for Un-american Activities do Congresso.

O tema da guerra agitou o Congresso de Matemáticos. Smale convocou uma entrevista com jornalistas vietnamitas, americanos e soviéticos, na escadaria principal da Universidade de Moscou. Criticou tanto o envolvimento americano na guerra do Vietnam como a invasão soviética da Hungria em 1956. Logo depois, foi conduzido por funcionários soviéticos para um passeio com destino incerto em carro preto. Smale conta que foi tratado com o maior respeito e, finalmente, devolvido, sem entender o objetivo do passeio forçado. O susto não foi pequeno, mas o pior estava por vir.

Os comentários sobre a guerra do Vietnam repercutiram muito mal nos Estados Unidos: como ousava criticar o governo em plena União Soviética, ainda mais em viagem financiada com recursos públicos?! Em represália, a universidade suspendeu sua bolsa-salário de pesquisa, alegando desvio de função. Na carta em que pede o restabelecimento do pagamento, Smale argumenta que matemáticos trabalham o tempo todo, em quaisquer circunstâncias, e dá o exemplo que ficou célebre: "Meu trabalho mais famoso foi feito nas praias do Rio de Janeiro!"

O pagamento foi retomado, mas até próprio conselheiro científico do presidente Nixon o atacou: "Esse espírito jovial faz os matemáticos acharem seriamente que o contribuinte deveria aceitar que a criação matemática nas praias do Rio de Janeiro seja financiada com recursos públicos!" O apoio inequívoco de diversas organizações à independência dos cientistas para desenvolverem pesquisa como lhes parece melhor trouxe bom senso a tais reações.

Aos 86 anos e pesquisador honorário do Impa, continua ativo e já orientou muitos brasileiros, incluindo meus colegas Jacob Palis, César Camacho e Aloísio Araújo. Smale voltou inúmeras vezes ao Brasil, a mais recente em novembro de 2016, para a conferência em comemoração aos 70 anos de Welington de Melo. Foi uma imprevista despedida do velejador companheiro de empreitada no iate, que morreria um mês depois.


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