Folha de S. Paulo


Coisas do mundo

A economia, como área de conhecimento que tem dificuldade de resolver suas controvérsias empiricamente e sujeita a interesses e ideologias, produz algumas discussões enfadonhas e outras interessantes.
São os casos das críticas que Samuel Pessôa fez recentemente a colunas minhas.

Na primeira, em 1º/2/2015, Samuel disse que estava errada minha afirmação de três dias antes de que há uma controvérsia teórica na causalidade entre poupança e investimento. Todos saberiam da soberania do investimento. Ao final da coluna de 12/2, usei suas próprias palavras para mostrar que sua conclusão foi que antes de tudo é preciso mais poupança (pública) para "arrumar a casa" e baixar o juro.

Em 15/2, Samuel afirmou que isso não significa que a poupança seja necessária para financiar o investimento. O investimento pode ocorrer, mas seria insustentável. E aí traçou um caminho em que a falta de poupança leva a eventos como a hiperinflação dos anos 1980/90...

Para mim, esse é um forte sinal da exigência de poupança prévia! A ginástica de Samuel mostra que as controvérsias econômicas podem reciclar as narrativas, mas não mudam a essência das teorias e tampouco suas recomendações de política.

Mais interessante foi a observação, também em 15/2, sobre minha coluna "O xis do problema", de 12/2. Ela mostrou a evolução do salário médio real de 2000 a 2013, destacando que desde 2006 há pequena era dourada no mercado de trabalho, graças ao crescimento, a políticas públicas (como a valorização do salário mínimo) e a um renovado ativismo sindical, que propiciou manter os ganhos salariais mesmo após o crescimento cair a partir de 2011.

Para tanto, concorreram motivos externos (maior demanda pelas exportações brasileiras) e da política econômica interna, como a elevação dos investimentos públicos (PAC) e medidas de distribuição de renda.

Houve erros. Por exemplo, permitir uma prolongada apreciação cambial e a aposta a partir de 2012 nas desonerações tributárias, que pouco alavancam a demanda, para reativar a economia diante da recidiva da crise externa.

Entre acertos e erros, a conjugação de maior poder de barganha trabalhista e menor crescimento fez a política econômica ser crescentemente atacada e levou à revolta das elites econômicas e ao clamor por austeridade.

Samuel não gostou dessa conclusão, dizendo que ele e nenhum economista que conhece são contra aumentos de salários.

Nesse sentido, há uma tese de que a qualidade da política praticada de 1999 a 2005, do fim da âncora cambial até a gestão de Palocci, foi o que fez a economia melhorar. Embora não tenha propiciado um bom desempenho para os salários enquanto esteve em vigor, ela teria surtido efeito logo após deixar de ser praticada, ainda que substituída por uma política tida como pior.

Tal tese segue a tradição filosófica de usar a razão para combater os sinais enganosos vindos dos sentidos. Por exemplo, é preciso um esforço racional para aceitar que, ao contrário do que diariamente sugere a percepção, é a Terra que gira em torno do Sol.

A razão é capaz de identificar padrões que permitem entender e explicar as coisas do mundo. O diabo é que sua enorme potência faz com que bastem fiapos da realidade para criar modelos, que, mesmo tendo estrutura conceitual e força retórica, podem assumir caráter algo mítico.

Isso gera uma multiplicidade de opiniões, cujos choques nem sempre são passíveis de ser dirimidos por meio de critérios racionais e empíricos. A economia nos últimos dois ou três séculos reproduz clivagens de entendimento que na filosofia (racionalismo e empirismo) remontam a igual quantidade de milênios.

Isso não torna a economia imune à lógica e às evidências, mas implica uma dose de convicção íntima para optar entre entendimentos. Por isso, acredito na sinceridade de Samuel sobre os ganhos salariais.

Porém isso é do debate teórico. No mundo, os conflitos entre empresários, financistas e trabalhadores não dependem tanto dos entendimentos econômicos, que costumam ser escolhidos por justificar interesses específicos como se fossem gerais.

Por isso, suspeito que um dos principais motivos para a economia neoclássica ser dominante em repercussão é prometer aos mais pobres melhores condições de vida no futuro enquanto lhes impõe um presente de sacrifícios (juro mais alto e ajuste fiscal para pagá-lo) que beneficiam os mais ricos.


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