Folha de S. Paulo


A igualdade é laranja

As imagens do lixo espalhado pelo Rio de Janeiro após o Carnaval em razão da greve dos garis mostraram algo óbvio: a importância do trabalho braçal. Óbvio também é que, por mais que essa seja a opção que restou para quem não teve a chance se qualificar para outros tipos de trabalho, a organização coletiva dos trabalhadores é capaz de fazer valer sua relevância social.

O caso me lembrou uma de minhas perplexidades da infância: não entendia por que o trabalho como lixeiro, tão útil e duro, fosse mal remunerado enquanto atletas ganhavam muito bem para se divertir jogando bola! Nunca deixei de estranhar a situação, mesmo tendo virado economista.

Nem todos compartilham desse entendimento. Por exemplo, Eduardo Giannetti, ao percorrer a imprensa no mês passado, como no artigo "Igualdade de quê?" na Folha de 13/2/2014, explicou as razões da direita em relação à desigualdade.

O esforço igualitário, se diretamente relacionado à renda, seria desnecessário -se não pernicioso, acrescento-, pois a Justiça estaria em propiciar condições de partida equânimes aos indivíduos para que busquem, por meio de seus esforços e talentos, o melhor para si mesmos.

Tal lógica permite obter poderosos consensos com a esquerda, como o de cobrar impostos para financiar a universalização de educação e saúde. Outro seria justificar uma brutal taxação de herança para mitigar a cumulatividade das disparidades de riqueza nas oportunidades de partida das gerações seguintes.

Mas tenho dúvidas se a direita estaria disposta a levar essa lógica a tal ponto. Na prática, igualar as oportunidades individuais não é tarefa simples.

Nesse sentido, Hélio Schwartsman, na coluna "Berço e destino", de 2/3/2014, apontou uma outra dificuldade. Seu tema foi o livro "The Son Also Rises", do economista Gregory Clark, que pesquisou a mobilidade social num horizonte longo para evitar que casos relativamente isolados dificultem seu entendimento.

A despeito de significativas dificuldades metodológicas -por exemplo, a de somente o nome paterno se perpetuar-, cruzando em alguns países sobrenomes com a presença em ambientes de poder, prestígio e riqueza, como em elites universitárias e em cadastros de proprietários de terras, Clark concluiu que a mobilidade social é menos intensa do que se supõe na modernidade,
isto é, desde que os ideais das revoluções burguesas se espalharam por boa parte do mundo.

Isso valeria tanto para países industrializados ricos, como os EUA e a igualitária Suécia, quanto para outros mais arcaicos, como a Índia e países latino-americanos.

Clark entende que na base dessa persistência está a herança genética, que causa um forte viés nas condições individuais de partida.

Com ou sem viés biológico, a conclusão é que não é possível evocar a mobilidade social, supostamente ampla, para legitimar a desigualdade de renda.

Felizmente, como Clark também conclui, o esforço igualitário tem tido sucesso, reduzindo a distância entre elites e classes populares.

O ataque da direita à igualdade de renda conseguia ser bem-sucedido quando a alternativa eram o autoritarismo e a estagnação socialista. No entanto, o sucesso do capitalismo dependeu de aliar seu dinamismo inovador (e concentrador) a políticas de combate às desigualdades de oportunidades (educação, saúde e infraestrutura urbana) e também de renda: salário mínimo, previdência e seguro-desemprego.

O esforço igualitário amplia as condições de mobilidade e, ao diminuir as disparidades de rendimentos, também previne contra uma possível estratificação social estrutural. Além disso, o combate à desigualdade não favorece somente os mais pobres, pois alavanca o crescimento e propicia estabilidade social.

Claro, isso não acaba com a oposição entre direita e esquerda. Mas prefiro ressaltar suas distintas ênfases nas virtudes da competição e da cooperação, sem chegar a pregar que a igualdade de renda ou a eficiência não importam.

Desse jeito, é possível que, na disputa democrática, os usos de políticas públicas a que cada um dos lados é mais afeito, como abertura comercial e salário mínimo, sejam discutidos e ajustados concreta e pragmaticamente.

De resto, quando falta às elites capacidade de ponderar entre interesses estritamente individuais (imediatos) e o bem comum (mediatos), o trabalhador deve se mobilizar para mostrar seu valor. Vivam os garis!


Endereço da página: