Folha de S. Paulo


Tempos idos

A coluna anterior mostrou que é restrita a margem para que qualquer governo faça redução de despesas. Isso se deve ao fato de a Constituição de 1988 (CF) ter vinculado grande parte das receitas da União a gastos sociais e a transferências para Estados e municípios, além do peso de despesas contratuais, como benefícios previdenciários.

Tal rigidez faz a CF ser amaldiçoada. Em contraponto, vale entender as motivações e as dificuldades do debate na Constituinte. Uso o texto, publicado pela Cepal em 2005, "Análise das contribuições sociais no Brasil", da economista Erika Araújo.

Um objetivo central da CF foi o de traduzir o desenvolvimento econômico que o Brasil teve no século 20 em direitos universais.

Antes, os institutos de Previdência ofereciam assistência médica, além de pensões e aposentadorias, mas apenas a seus associados (trabalhadores urbanos formalizados). A educação pública também era restrita. A caridade financiava a assistência social.

A CF criou um sistema de Seguridade (Previdência, saúde e assistência social) e de educação que, exceto pela Previdência, que de modo geral permanece vinculada às contribuições feitas pelo trabalhador ou em seu nome, é acessível a todos.

Essa universalização exigia fontes gerais de recursos (impostos), pois a contribuição sobre a folha de salários cria vínculo difícil de ser desassociado entre o serviço prestado e o trabalho com carteira assinada.

O problema é que as comissões Tributária e Social trabalharam de forma por demais independentes.

Na primeira, prevaleceram preocupações de proteger o indivíduo do poder estatal. A democracia nascente também ansiava por descentralização, o que se refletiu no aumento da participação de Estados e municípios nas receitas de IR e IPI, além da ampliação da base do ICMS, feita pela incorporação de tributos, como o de combustíveis, antes vinculados a setores de infraestrutura.

Na Ordem Social, era preciso criar lastro para financiar os novos direitos: as contribuições sociais, que incidem sobre a produção e são destinadas à Seguridade. Apesar de terem jeito de impostos, as contribuições tiveram requisitos legais menos duros. Por exemplo, não vale a restrição à tributação em cascata. Elas tampouco são divididas com Estados e municípios.

As contribuições permitiram elevar a carga tributária. Em parte para gerar superavit primário, mas também para estruturar o SUS, o Bolsa Família, uma educação pública universal, que conta com recursos cativos gerais, entre outras coisas.

Em proporção do PIB, o Brasil tem hoje gastos públicos próximos aos dos países ricos. Os deficit de qualidade dos serviços se devem ao fato de a renda per capita não ser alta.

No entanto, a tributação crescente sobre a produção passou a prejudicar a competitividade do país, em especial da indústria de transformação. Isso criou demandas legítimas por uma reforma tributária, que passaria por aumentar o peso dos tributos sobre a renda e sobre a riqueza e/ou por aglutinar as contribuições e o ICMS num Imposto sobre o Valor Agregado (IVA). Nos dois casos há dificuldades políticas, ligadas à resistência contra a tributação direta e à explicitação de uma alíquota elevada para o IVA, cujas estimativas são da ordem de 40%.

Porém a questão é ainda mais complexa. A CF foi feita num país bem distinto do atual, sob a preocupação de criar sistemas universais de educação e saúde. Hoje, outras demandas se tornaram prementes, como mobilidade urbana e saneamento, que, por não contarem com recursos cativos, são vulneráveis a cortes orçamentários.

Ligadas em geral a investimentos em infraestrutura, essas demandas também sofrem com a falta de clareza na definição de competências entre as esferas de governo.

Quer dizer, vale rediscutir o pacto federativo. Há questões como a falta de instrumentos para facilitar a ação cooperativa em regiões metropolitanas e as disparidades na repartição dos recursos entre os entes subnacionais.

Mesmo as vinculações sociais, apesar de seus méritos, ainda são capazes de aproximar os recursos das necessidades? Ou reforçam as disparidades federativas?

No passado, a esquerda resistiu a uma revisão constitucional ampla por temer que a hegemonia liberal levasse à perda de direitos sociais.
Talvez seja a hora de repensar o assunto. A estabilidade fiscal e a vivência democrática permitem estruturar uma agenda consequente e progressista.

marcelo.miterhof@gmail.com


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