Folha de S. Paulo


No mundo da Lua

Os grandes casos políticos em curso foram revelados por concorrentes da Folha: o novo escândalo do Orçamento e a CPI dos precatórios. O primeiro foi um furo do jornal ''O Globo'' de quinta-feira. O outro resulta da persistência do diário ''O Estado de S.Paulo''. Ponto para eles.

A denúncia lançada pelo ministro Gustavo Krause no ''Globo'', de que o deputado federal Pedrinho Abrão (PTB-GO) teria pedido 4% de comissão a empreiteira para manter verba de obra sua no Orçamento, vem lembrar que o Congresso não é bem um mar de tranquilidade, em que manobravam os cruzadores intergaláticos da reeleição.

Como se movem por uma lógica do outro mundo, parlamentares e governo obrigam a imprensa a reafirmar todos os dias uma velha tautologia: o segredo é o maior inimigo do bem público.

A culpa do líder petebista ainda está por ser provada, certo, mas é sintomático que ele tenha desaparecido, de imediato. Manifestou-se somente por meio de uma nota, na qual mais acusou do que se defendeu. Torna-se automático suspeitar que tenha algo a esconder.

Quem teve algo para mostrar valentia de botequim nesse episódio foi outro petebista, Paulo Cordeiro (PR). Acompanhado de sua turma, foi tirar satisfações com Krause e, impaciente, enfiou a mão na cara de um assessor do ministro. Depois, deu justificativas pueris, ainda que coerentes com seu gesto. Coisa de lunático.

Não se deve esperar outra coisa, talvez, de uma instituição que admite o convívio com entre outros um senador que também investiu contra o rosto de desafeto político. Mas com um tiro, na hora do almoço, num movimentado restaurante de João Pessoa (PB). Depois da tentativa de homicídio, foi muito bem votado.

É por essas e por outras que falar em opinião pública, no Brasil, é falar de uma quimera, do dragão de São Jorge. Não tem cabimento culpar apenas o Congresso. Enquanto pessoas como Paulo Cordeiro e Ronaldo Cunha Lima forem tratados com a dignidade que seus próprios atos contradizem, somos todos nós, e a imprensa em particular, que temos de nos envergonhar.

Dívida astronômica

O caso dos precatórios (determinações judiciais para pagamento de dívidas de governo) não desceu ainda tão baixo. Mas não lhe falta potencial, uma vez que os valores envolvidos são muito altos. Astronômicos, mesmo, daqueles que, se transformados em notas de R$ 1 enfileiradas, dariam várias idas e vindas à Lua.

Até agora a Folha foi mal nessa história. Chegou atrasada e com certa timidez, por assim dizer. Mas o caso não pára de crescer e já deu até em CPI.

Ele cresce por uma razão simples: é absurdo. Através de uma brecha da Constituição de 1988, governadores e prefeitos começaram a imprimir dinheiro (emitir títulos) para honrar pagamentos determinados pela Justiça. Só em teoria, porque emitem valores muito maiores do que o necessário, em alguns casos com manipulação de informações e documentos.

A Prefeitura de São Paulo foi uma das que mais emitiu, coisa de bilhão para cima. Só um décimo do dinheiro levantado foi para precatórios. O restante caiu na vala comum que abasteceu a festa de inaugurações de túneis e viadutos que ajudou a eleger Celso Pitta. Ele esteve no centro dessa prestidigitação financeira, como secretário de Finanças.

A festa dos governadores e prefeitos ajudou a complicar a dívida pública, que dez entre dez economistas dizem ser o calcanhar-de-Aquiles da estabilidade macroeconômica no Brasil. Vista desse ângulo, a irresponsabilidade dos governantes já seria suficiente para enrubescer a face risonha da própria Lua. E para encher os jornais de reportagens investigativas.

Os leitores da Folha ainda aguardavam, anteontem (quando foi redigida esta coluna), uma radiografia implacável das emissões paulistanas com o álibi dos precatórios. Há muitas perguntas sem resposta: no que foi gasto o dinheiro da diferença, se alguém pode ou deve ser responsabilizado por esse desvio, por que o Senado e o Banco Central autorizaram essa orgia, se houve participação de corretoras na montagem das emissões, qual o lucro por elas auferidos na compra e venda desses títulos.

Contagem regressiva

No domingo passado, a Folha publicou a segunda e mais importante lista de aposentadorias especiais do INSS, a dos ex-combatentes. Anteriormente, tinha saído no jornal somente a dos anistiados políticos. Sanada a omissão discriminatória, sobram ainda questões não esclarecidas.

Em primeiro lugar, o jornal não explicou por que os proventos de ex-combatentes alcançam valores muito superiores aos de anistiados. Em segundo lugar, por que há tantos nomes de mulheres entre as pensões mais altas. Supõe-se que sejam viúvas de ex-combatentes, cuja carreira profissional tenha sido abortada antes de chegarem aos postos em que teriam salários de R$ 42 mil... Não são exatamente frequentes salários dessa ordem, no Brasil.

Os leitores devem se preparar, porque novas listas virão por aí, e muito mais revoltantes. Isso, claro, se a facilidade com que vazam, no INSS, listas prejudiciais a pessoas físicas for observada também com pessoas jurídicas. Afinal, essas aposentadorias especiais injustas, repito, para que não alistem o ombudsman entre os defensores dos marajás mordem o INSS em alguns milhões. A sonegação de contribuições previdenciárias, por seu turno, alcança a casa de R$ 6,7 bilhões.

A informação é da própria Previdência. Está no ''Estado'' de anteontem. O ministério comandado por Reinhold Stephanes anunciou também que conclui até quinta-feira próxima a relação dos maiores sonegadores de São Paulo, onde se concentra quase metade desse buraco negro.

Com certeza o ministro convocará toda a imprensa para apresentar a lista. É a atitude a esperar de quem tem compromisso com o bem público e não divulga somente as informações que lhe convêm.

Desestatizando a Lua

A manchete realmente surpreendente da semana foi do ''Globo'', mas não a do novo escândalo do Orçamento. Um dia antes, o jornal do Rio tinha conferido estatura épica à notícia mais interessante daquele dia: ''Descoberta de água na Lua pode permitir colonização do espaço''.

Por um instante, o leitor foi teletransportado de um mundo povoado de anões morais para a imensidão do cosmos. Pensou ter ouvido um eco distante de outros tempos e outros jornais, com notícias muito mais relevantes para dar: ''Men walk on Moon''. Foi o paroxismo da idéia de ''desestatização'' do noticiário, da necessidade sentida por quase todos os jornalistas, hoje, de tornar seu relato do mundo menos dependente do Estado e suas mazelas.

Essa instituição anda mesmo com prestígio mais baixo que o da Nasa. A agência espacial norte-americana, e todo o complexo industrial-militar que semeou à sua volta, espera ansiosamente a reativação do programa espacial. ''Descobertas'' como a de vida em Marte e de água na Lua, na realidade indícios muito indiretos que demandarão ainda anos de pesquisa, são a sua sopa no mel, como a mulher de 40 anos para um decadente Roberto Carlos.

Foi o que faltou dizer no noticiário selenita desta semana. Uma consideração mais prudente e desconfiada poderia resultar num tratamento discreto, como o título de duas colunas no alto da capa da Folha. Foi uma decisão acertada. Sua manchete daquele dia, no entanto, era de uma mundanidade aterradora, em comparação com a do concorrente fluminense: ''Imposto de microempresa é reduzido''.

Todos os jornais estão tateando, nessa busca de novos temas e abordagens que se convencionou chamar de ''desestatização''. Talvez gastem mais tempo nessa exploração do que a sonda Pathfinder levará para pousar em Marte. Para abrir esse caminho, é preciso arriscar umas tantas ''viajadas na maionese'' até a Lua, como a do ''Globo''.

Não é só com pequenos passos, mas igualmente com pequenos tropeços, que se preparam os grandes saltos.


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