Folha de S. Paulo


Pane jornalística no vôo 402

Não é fácil dizer onde imperou confusão maior, se na rua Luís Carlos Orsini, há dez dias, ou na cobertura jornalística da queda do Fokker-100 da TAM. O acidente matou 98 pessoas, enlutou a cidade e pôs à mostra toda a fragilidade da imprensa diante de uma notícia dessa magnitude.

Ler vários jornais, nos últimos dias, não significou ficar mais bem-informado, só mais desorientado. Especulações e informações contraditórias voavam de todos os lados.

O desastre do vôo 402 foi ao mesmo tempo o inferno e o paraíso de editores e repórteres: um raio em céu azul, comoção do público, demorado sigilo nas investigações, enorme complexidade técnica e a reputação de uma empresa de renome em jogo. Em resumo, muitos leitores e pouco esclarecimento.

No meio do tumulto, começou a frenética e cativante busca das ''causas''. Qualquer migalha de informação, mesmo mal apurada e sem confirmação, corre o risco de virar manchete, numa situação dessas. O jogo se resume a ter uma novidade para fornecer a cada dia, enquanto ''o caso'' durar.

Mecânica fatal

Veja o exemplo do celular expiatório. Aventado desde a primeira hora como emissor das ondas eletromagnéticas do destino, já estava em baixa uma semana depois.

Os jornais não conseguiram responder, ainda, de modo conclusivo, a uma pergunta simples: o acionamento do tal do reversor (freio aerodinâmico) da turbina tem alguma fase eletrônica ou não? Ou seja, a ''ordem'' para abrir passa ou é originada por algum circuito impresso, por exemplo de um computador?

Em caso afirmativo, ao menos teoricamente a interferência de um celular ou computador portátil não poderia ser descartada.

Por vezes, o leitor tem a impressão de que jornalistas não sabem bem do que estão falando quando saltam de falhas mecânicas para eletrônicas, humanas, eletromecânicas, hidráulicas, de manutenção etc. A Folha, por exemplo, chegou a anunciar num título de alto de página como grande novidade que o delegado encarregado do caso estava convencido de que ocorrera falha mecânica. Mas qual, e por quê?

Milagres e premonições

A combinação de sigilo, emoção e complexidade também é propícia à multiplicação de lendas e raciocínios mágicos. Não faltaram ''milagres'' e ''premonições''. Afinal, aquele 31 de outubro era o Dia das Bruxas (que ele seja comemorado nos EUA e não no Brasil é só um detalhe sem importância).

O piloto José Antônio Moreno foi precocemente entronizado como herói. Já na sexta-feira (1º/11), o programa de TV ''Globo Repórter'' anunciou que, num suposto diálogo com a torre do aeroporto de Congonhas, Moreno teria dado conta de um desvio para poupar escola da região. A revista ''Veja'' reproduziu a conversa, com aspas e tudo, mas hoje se sabe que o piloto estava ocupado demais e não trocou uma palavra com o controle.

Depois disso, jornais diários foram publicando na base de conta-gotas as frases ditas dentro da cabine de comando do PT-MRK. Atribuíram-se significados importantes a frases desconexas, como ''em cima, em cima'' (apresentada como ordem para o co-piloto recolher trem de pouso, mas também como tentativa de desligar mecanismo automático de aceleração, ou ''autothrottle'').

Quando há muitas lacunas numa história, a tendência é preenchê-las com imaginação e fantasia. Quanto menor e mais insignificante a causa, mais interessante ela se torna. O máximo alcançado, nessa linha, foi a manchete de anteontem da Folha: ''Fio partido pode ter derrubado jato''.

É bom esclarecer: não foi encontrado nenhum fio partido. É só uma hipótese, provavelmente impossível de comprovar. De qualquer maneira, a possibilidade de um curto-circuito ser responsável pelo efeito abre-e-fecha do reversor já tinha sido arrolada cinco dias antes pelo concorrente ''O Estado de S.Paulo''.

Rádios piratas

Os que têm interesses envolvidos, como a TAM, podem também tentar favorecer aquelas possibilidades menos danosas para sua imagem. É o caso dos celulares e das rádios piratas, que excluem eventuais falhas de manutenção. Em mais de uma oportunidade, ''fontes'' da empresa trataram de mantê-los no rol de culpados _resguardadas no confortável sigilo de fonte (''off''), claro.

Como não terá depois de prestar contas de suas informações, a ''fonte'' pode até arriscar dados factuais para dar maior credibilidade a suas especulações. No caso, ''O Estado de S.Paulo'' chegou a publicar que a caixa-preta do Fokker-100 registrou uma interferência de rádio. Quando sair o relatório final, daqui a uns dois meses, e se ele nada contiver disso, ninguém vai mais se lembrar, mesmo.

O fato de uma determinada informação diminuir o prejuízo à imagem da TAM obviamente não exclui a possibilidade de que seja verdadeira. Cabe no entanto aos jornalistas levar esse dado em consideração, no momento de decidir se é digna de crédito e, principalmente, com que destaque será publicada.

A imprensa deve submeter toda e qualquer informação à crítica, de forma visível para o leitor _seja ela proveniente da TAM, da comissão investigadora ou da autoridade policial. Como informação tem sido mercadoria rara, neste caso, tal trabalho de depuração não está acontecendo na intensidade desejável.

Caso de polícia

Nessas horas, delegados da Polícia Civil com faro para autopromoção na mídia também deitam e rolam. Vale até julgar e condenar um morto, como foi feito com Mauro Rodrigues de Mattos.

O passageiro do vôo 402 foi postumamente acusado de ter embarcado quase quatro quilos de cocaína no avião caído, por já ter sido preso como traficante. Segundo o policial Romeu Tuma Jr., ''apesar da condenação e da liberação, ele (Mattos) continuava ligado ao tráfico''.

O abuso policial mais chocante da semana, porém, envolveu a investigação do aparente suicídio do empresário Luiz Carlos Leonardo Tjurs na frente de sua noiva, a modelo e atriz Ana Paula Arósio. Na crítica interna da edição de quarta-feira, anotei:

''Depois de tudo que se falou sobre Escola Base, a Folha ainda dá divulgação para especulações e conjeturas de policiais irresponsáveis que podem prejudicar pessoas em princípio inocentes. Veja a reportagem 'Atriz Ana Paulo Arósio sai do choque' (pág. 3-8). Se o delegado Ivaney Cayres de Souza é despreparado o bastante para mencionar em público hipóteses fantasiosas de incitação ao suicídio, o jornal não precisa acompanhá-lo''. Foi, assim, uma satisfação ler na Folha de anteontem o editorial ''Privacidade violada''. Ele trazia uma admoestação cristalina:

''Um braço do poder público, que tem o dever de respeitar e defender a privacidade dos cidadãos e agir com discrição, é, lamentavelmente, o primeiro a violar esse valor. Sem nem sequer correr o risco de uma punição posterior, se, como no caso da escola Base, se verificar que as suspeitas eram infundadas''.


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