Folha de S. Paulo


Como usar um jornal

Existe um gênero jornalístico com audiência garantida, neste país de sub-remunerados: listas de salários exorbitantes, especialmente os pagos com dinheiro público. É a reportagem ''pega-marajá''. O último espécime saiu na Folha de terça-feira, com o título ''Anistiados recebem até R$ 24 mil por mês'' e chamada de capa. Alta leitura, movida a revolta e inveja.

Foi e é muito importante divulgar essas relações de abastados. Sejam salários ou pensões, só atingiram tais valores indecentes indecentes por saírem dos cofres de um Estado falido, note bem por causa do segredo em que sempre estiveram envolvidos. A quebra de privacidade representada pela publicação dos nomes e respectivos vencimentos é um mal menor, perto da necessidade de discutir abertamente a legitimidade desses gastos.

O caráter benéfico dessa revelação entra em crise quando o próprio governo começa a vazar, seletivamente, as informações. Sabe-se lá com que intenções, alguém no Ministério da Previdência resolveu lançar à turba o nome e os ganhos de apenas 45 aposentados especiais. Além de receber benefícios superiores a dez salários mínimos, eles têm em comum a condição de anistiados.

Suas aposentadorias são absolutamente legais, ainda que absolutamente iníquas. Alcançaram tais valores de sonho, para a maioria dos brasileiros, porque a lei permite calcular quanto poderiam estar ganhando caso tivessem prosseguido nas carreiras interrompidas por motivos políticos. Estar na legalidade e na condição de ex-perseguido, porém, não torna seu privilégio, na minha opinião, mais legítimo.

Ex-combatentes

Dito isto, de volta à questão jornalística: por que essa lista, e justamente ela, foi divulgada agora? O jornal, obviamente não a respondeu. Fazê-lo implicaria questionar a motivação da fonte, pondo em risco o acesso à informação exclusiva. Ocorre que a própria reportagem oferecia pistas de que havia algo de suspeito nesse vazamento.

Em primeiro lugar, havia benefícios muito superiores aos dos anistiados. Ex-combatentes, por exemplo, recebendo R$ 36 mil e R$ 42 mil. Só três nomes foram revelados no texto, que não explicou no entanto por que ganham tanto.

Na reportagem que deu seguimento ao assunto, quarta-feira, nova surpresa: não só os ex-combatentes têm as pensões mais altas como também compõem a maior parte da lista completa de quem recebe mais de dez mínimos do INSS. São 183 nomes, mas só 45 foram divulgados _os dos anistiados. Quem vazou a lista deve achar que estes têm menos direito à mamata do que aqueles, um raciocínio capenga sob qualquer ponto de vista.

Pois foi essa lógica que o jornal validou, publicando a lista capciosamente parcial. Ele, em primeiro lugar, mas também o Ministério da Previdência, ainda devem uma explicação à opinião pública e, claro, a lista dos ex-combatentes.

Sem elas, será lícito supor que a Folha foi manipulada numa manobra ''mediática'' do governo. Objetivo: reabrir a questão das aposentadorias especiais, e da reforma da Previdência em geral, usando como bucha de canhão um grupo reduzido de pessoas que já foi suficientemente perseguida no passado. Não é justo que só eles paguem o pato.

Pau na Internet

A maior parte dos usuários brasileiros da rede mundial de computadores esteve praticamente impedida de ''navegar'' nela, terça e quarta-feira. Mudanças técnicas efetuadas pela Embratel nas vias de comunicação criaram um verdadeiro caos telemático no mais badalado meio de comunicação (ainda que tanta fama não guarde proporção com sua importância econômica real).

Parece, porém, que a Folha só tem olhos para o ''glamour'' da Internet, e para a promessa comercial que ela representa. Embora invista pesadamente nessa nova ''mídia'', noticiou de forma mais que discreta, escondida, o sururu computadorizado em que seu serviço de acesso (Universo Online) se viu virtualmente paralisado.

Tudo que o jornal publicou na quinta-feira foi um texto de 30 linhas e título de uma única coluna, espremido entre um anúncio e o canto de uma página par (menos importante do que as ímpares) do terceiro caderno, São Paulo. Abaixo da dobra.

Como anotei na crítica interna da edição, a ''Gazeta Mercantil'' foi bem mais generosa com seus leitores. Deu grande destaque na capa ao assunto, com um bom título: ''O Brasil desliga-se da Internet''.

Anteontem, a Folha recuperou-se. Promoveu a cobertura para o caderno anterior (Dinheiro) e lhe dedicou uma cabeça de página.

Antes tarde do que nunca.

Privado, mais caro, ruim

O jornalismo brasileiro só completará sua trajetória de independência crescente quando usar a virulência das investigações também contra as vacas sagradas do setor privado.

Por exemplo, avaliando criticamente a fábrica pós-moderna da Volkswagen em Resende (RJ), como fez na terça-feira o diário norte-americano ''The New York Times''. A reportagem acabou virando notícia na Folha, que, mesmo estando a três centenas de quilômetros de Resende, e não milhares, não se dera ao trabalho nesse caso de cumprir com usa obrigação (ser crítica).

Esta semana, a imprensa nacional deixou ainda passar boa oportunidade de exercer sua capacidade crítica contra a sacrossanta privatização. Ninguém menos suspeito do que o ministro Clóvis Carvalho, conhecido como protótipo do ''gerentão paulista'', andou vociferando na quarta-feira contra tarifas altas de portos privados. A Folha até noticiou, mas discretamente, para dizer o mínimo (total de 16 linhas).

Ora, se há portos privados cobrando mais caro que portos estatais, é a própria razão de ser da privatização que sai arranhada (aumento de eficiência, diminuição do chamado custo Brasil etc.). Seria o caso de mostrar que portos são esses, como funcionam, e não ficar só na declaração do ministro.

Outra boa pauta sobre privatização foi assoprada na coluna Celso Pinto, na mesma edição de quinta-feira: o contribuinte do Estado do Rio de Janeiro vai desembolsar R$ 36 milhões (vários meses de aposentadorias para todos os 45 anistiados da lista) de remuneração ao banco Bozzano,Simonsen pela administração do Banerj.

O gestor privado estava incumbido de sanear e preparar a venda do banco sob responsabilidade do governador tucano Marcello Alencar. No fim das contas, ela acabará sendo feita seguindo a receita Nacional-Econômico, com separação da parte boa e da parte ruim. Adivinhe quem vai ficar com o mico.

O Banerj ainda é público e o Bozano,Simonsen está sendo pago com dinheiro público. Trata-se de uma operação que sempre foi apresentada como paradigma da privatização, em contraste com a novela ''atrasada'' do Banespa. São razões bastantes para que o bom jornalismo econômico faça uma radiografia impiedosa dessa administração, aparentemente mal-sucedida.


Endereço da página: