Folha de S. Paulo


Linha cruzada na privatização

ERRAMOS: 22/10/96 Diferentemente do que informou a coluna do ombudsman de 20/10, publicada à pág. 1-6 (Brasil), o jornal ''O Estado de S.Paulo'' participa de um consórcio para concorrer à exploração da telefonia celular privada. O consórcio é integrado ainda pela Bellsouth Corporation e grupos Safra, RBS e Arbi. Linha cruzada na privatização

Se você lê só a Folha, provavelmente não se deu conta de que terá de pagar mais pelo uso do telefone, dentro em breve, como consequência da privatização das telecomunicações. A notícia interessa a muita gente, particularmente a pessoas com o nível socioeconômico de leitores e assinantes de jornais, mas a Folha de quinta-feira omitiu-a em sua Primeira Página.

Comportamento diverso teve ''O Estado de S. Paulo'', que não participa de nenhum consórcio para concorrer à exploração da telefonia celular, como faz a Folha. O concorrente estampou no alto de sua capa a seguinte chamada: ''Telefonia vai subir antes da privatização''. Para ''O Globo'', metido em outro consórcio, o assunto também não mereceu primeira página.

O jornal fluminense, no entanto, deu destaque razoável para a notícia em suas páginas internas. Publicou no alto da pág. 27, a terceira do caderno ''Economia'', com quatro colunas, o texto ''Telefonia: Ministério admite que a classe média pagará a conta da reestruturação''. Mesmo sem conspurcar a palavra divina, ''privatização'', deixa claro que haverá aumento.

Na Folha, tudo era nebuloso e discreto. Também na terceira página do caderno de economia (Dinheiro), mas com apenas duas colunas de título e 26 linhas de texto, o jornal publicou um título que nada dizia: ''Governo quer preço regulado pelo mercado''.

É difícil de acreditar que a Folha pudesse esconder o assunto apenas por causa de seu interesse na privatização do setor, um dos maiores negócios em andamento no mundo. Seria primário demais, um risco para seu principal ramo de atividade _jornalismo, cujo mercado se alimenta de credibilidade e independência.

O pequeno destaque da notícia foi resultado de descuido, explica a secretária de Redação Eleonora de Lucena:

''Foi um erro de produção e de edição. A notícia não foi bem avaliada, teríamos de dar melhor''.

O erro é preocupante não só porque contribuiu para privar leitores de uma informação útil para suas vidas, mas por causa da área envolvida. Exatamente porque a Folha tem interesses na privatização das telecomunicações, esse assunto deveria disparar mil luzes vermelhas e buzinas na cabeça de cada jornalista da empresa.

Com o evidente conflito potencial de interesses (jornalísticos vs. empresariais), impõe-se ao jornal o constrangimento da mulher de César: reafirmar, a todo momento, sua honestidade (isenção).

''Mottar''

Há outra falha jornalística intrigante nesse episódio, e aqui de todos os jornais: falta de memória. Nenhum deles lembrou a seus leitores que a notícia tem relação com um caso até hoje mal-explicado, o do anúncio de um aumento de 200% da assinatura básica da telefonia convencional. Ele foi feito em 27 de agosto, por ninguém menos do que o presidente da Telebrás, Fernando Xavier Ferreira, apenas para ser desmentido dois dias depois.

Esquisita, a ocorrência provocou muito zunzunzum no ''mercado'' (essa antítese da opinião pública). Teoricamente, alguém com informações privilegiadas sobre o anúncio e o desmentido poderia ganhar muito dinheiro na Bolsa comprando e vendendo ações da Telebrás.

O falatório só chegou a uma parcela maior do público porque o ex-ministro Delfim Netto (PPB) pôs sob suspeita o próprio ministro das Comunicações, Sérgio Motta (PSDB). Foi durante a campanha eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, no programa de TV ''Jô Soares Onze e Meia'', quando Delfim cunhou o verbo ''mottar'' como resposta ao ''malufar''.

As ações da Telebrás são coisa realmente muito especial. Se o leitor quiser mais informações sobre os bastidores das operações com elas, recomendo a leitura da reportagem ''Pregão de cartas marcadas'', publicada na revista ''Carta Capital'' do último dia 16.

Com ela se aprende, entre outras coisas, que os papéis da estatal representam uns 70% de todo o mercado acionário no Brasil. No México, onde essa fatia também é exagerada, pouco ultrapassa 20%. Esses números dão uma idéia do valor que podem ter as palavras de um ministro falante como Sérgio Motta.

'Privatização ''popular''

Outra reportagem instrutiva sobre desestatização foi publicada na Folha de anteontem (''Força debate uso de FGTS em privatização'', pág. 2-14). A idéia, já apresentada na coluna de Luís Nassif, foi defendida na central sindical pelo economista Paulo Rabello de Castro.

Trata-se de ampliar o universo de participantes em negócios da China como a venda da Companhia Vale do Rio Doce para a iniciativa privada. Isso seria feito permitindo que trabalhadores usassem seus depósitos no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço para comprar ações.

No Brasil, até agora, apenas 310 mil investidores entraram nessa roda, informava o texto. No Reino Unido governado pelo maior ícone da ideologia privatizante, Margaret Thatcher, o processo envolveu 13 milhões de pessoas.

Como acredito que será a opinião de qualquer participante do FGTS, parece-me um bom negócio. Em seis anos de cargos de confiança na Folha, acumulei um saldo razoável no fundo, que rende apenas 3% ao ano. Arriscaria de bom grado parte ou mesmo todo esse precário seguro antidesemprego num investimento que atrai como moscas os maiores capitalistas do país e do mundo.

Eis aí um assunto que pode ser do interesse de grande parcela dos leitores. No mínimo, a imprensa deveria esclarecê-lo melhor, esmiuçar vantagens de desvantagens da operação, quem ganharia e perderia com ela. Mesmo que seja para concluir pela inviabilidade, no Brasil, dessa receita mais completa, coerente e distributiva de modernização, já aprovada no exterior.

''Roda Viva''

Eleonora de Lucena não é alguém que necessite de apoio ou solidariedade, como mostrou segunda-feira na entrevista do programa ''Roda Viva'' com o presidente da República. Por isso, limito esta observação ao significado jornalístico de seu enfrentamento televisivo com Fernando Henrique Cardoso.

Um dia depois de ganhar páginas e páginas na Folha para expor sua admirável visão do Brasil, o professor FHC deixou claro que leva a sério a missão proclamada por sua mulher, Ruth Cardoso: disciplinar jornalistas. Não lhe basta a concordância fundamental da imprensa, ideológica e programática, com seu governo.

O presidente-Real quer banir o pouco de espírito crítico que se insinua pelas frestas das discordâncias localizadas sobre a condução do programa (juros altos, desemprego, reformas lentas etc.).

Para calar as perguntas incômodas, vale tudo. Impedir o jornalista de formular por completo sua questão, ao mesmo tempo em que o acusa de interromper sua linha de pensamento. Comparar a taxa de desemprego com a de países que não têm 10% da população excluída da vida social digna. Queixar-se da atribuição de intenções e insinuar as piores em qualquer pergunta ou título que o desagrade. Ignorar dados oficiais que contrariem sua tese e dizer que o interlocutor desconhece informações de que dispõe por ser o presidente da República. Reconhecer um erro para fugir de uma questão fundamental: contra ou a favor do aborto?

Nestes tempos de política-espetáculo, o jogo do jornalismo é esse mesmo: propor armadilhas. Lamentavelmente, de um certo ponto de vista, mas é esse. Joga quem quer. E FHC quer, inclusive por mais quatro anos (embora não admita abertamente). Cabe aos jornalistas evidenciar que as regras não lhe dão a prerrogativa de impugnar lances que não lhe convenham.


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