Folha de S. Paulo


No ônibus com Maluf

A Folha vem fazendo um esforço visível de comparação equilibrada das administrações Luiza Erundina e Paulo Maluf na Prefeitura de São Paulo. Isso tem resultado em longos dossiês publicados aos domingos, como nos casos de habitação e saúde. No dia 19, porém, o equilíbrio foi para o espaço, com a reportagem ''Proposta de Erundina para ônibus custa mais para o cofre da Prefeitura'', publicada na pág. 1-5.

Mesmo nos outros casos, há quem duvide principalmente entre ex-administradores petistas desse equilíbrio. Ele seria apenas formal, formalista, até. O Painel do Leitor tem refletido muitas dessas opiniões.

Os leitores terão dificuldade para tirar conclusões, pois a discussão de pontos de vista para a interpretação dos dados apresentados é árida. Mais ainda, é quase impossível de separar de concepções mais básicas, ideológicas mesmo, sobre o que seja o bem público.

O que o jornal não pode fazer é basear-se só ou principalmente em uma dessas concepções. Pois foi o que aconteceu com a reportagem sobre transportes, que privilegiou um ponto de vista meramente financeiro (desembolso pela prefeitura), sem dar a devida importância à questão fundamental: se o transporte público está pior ou melhor.

O cofre e o bolso

A reportagem tinha três partes: dois textos (abre e sub-retranca, no jargão jornalístico) e um quadro (''O ônibus do PT e o ônibus do PPB''). Sobre este último não há muito a dizer, pois é uma enumeração objetiva de dados representativos. Os problemas aparecem nos textos, que fazem a avaliação dos números e lhes atribuem um sentido.

O primeiro (abre) dá grande destaque no título e nos primeiros parágrafos a uma informação negativa para Erundina (gastos superiores da prefeitura). Do meio para o final, faz menção ao fato de que o custo total do sistema aumentou na gestão Maluf e que o passageiro paga toda a diferença (do aumento do custo e da diminuição do subsídio).

O texto não destaca, porém, que esse aumento de custos foi proporcionalmente maior (33%) do que o do total de passageiros transportados por ano (5,6%). Aceita, sem maior questionamento, a justificativa da SPTrans (empresa que administra o sistema de transporte) de que o custo aumentou porque haveria mais 1.133 ônibus em circulação.

Afinal, o próprio quadro dava motivos números para questionar a eficiência do sistema, apesar de haver mais ônibus em circulação: a tarifa deu um salto de 150% em dólar; a velocidade média piorou 25%; o tempo médio de viagem subiu 16,7%. Além disso, a ocupação foi de sete para oito pessoas por metro quadrado.

Em poucas palavras, transporte pior e mais caro. Mas a Primeira Página, naquele dia, cravou: ''Transporte custou mais caro na gestão da petista''. Para quem?

Nos EUA, a Meca dos inimigos dos subsídios, o usuário paga em média 38% do custo real da tarifa, segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). O restante é dividido entre governo e empregadores. Na cidade de São Paulo, paga 94%.

Avaliação por usuários

O segundo texto até registrava que Maluf pouco investiu nos corredores exclusivos, a forma mais eficiente de acelerar os coletivos. Só que, mais uma vez, na metade final do texto.

O título e os primeiros parágrafos, de novo, eram bons para o padrinho de Celso Pitta: ''Transporte de Maluf é melhor avaliado''. Um paradoxo, em face dos indicadores de piora do serviço.

Os dados considerados saíram de pesquisas semestrais Gallup/ANTP com usuários. Mesmo selecionando os dados mais negativos para Erundina (avaliação só de ônibus da antiga CMTC e por todo tipo de usuário), nota-se uma melhora acentuada a partir de junho de 1991, ano da chamada ''municipalização''. De um fosso de mais de 40 pontos negativos, saltou para 36 positivos no final do mandato (dezembro de 1992).

Foi desse patamar alto que partiu Maluf. No final de seu mandato, porém, a avaliação foi de 20 pontos. Dito de outro modo, o título não se sustenta, nem mesmo com o recurso à maior regularidade das notas malufianas (não teve escores negativos), mencionada no começo da sub-retranca.

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Apesar de tudo isso, não me parece que a reportagem da Folha tenha saído como saiu por malufismo, como concluíram leitores que procuraram o ombdusman. Seu erro fundamental é analisar a questão de um ponto de vista imediatista, utilitarista, burocrático, míope, estreitamente empresarial.

Essa doença não grassa apenas nesta administração municipal, ela envenena a maior parte da discussão pública no Brasil e no mundo, com a colaboração entusiasmada de boa parte dos jornalistas. Foi agravada, neste caso particular, pela escolha de títulos em flagrante desacordo com o dogma do apartidarismo professado pela Folha.

''A matéria (reportagem) centrou-se na questão financeira. Deveria ter tido um texto específico do ponto de vista do usuário'', afirma Fernando Canzian, 30, editor do caderno Brasil.


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