Folha de S. Paulo


Reportagem também é cultura

O jornalismo cultural da Folha, que já fez época com a Ilustrada, foi sacudido esta semana do marasmo em que se encontra há meses, anos. Na terça-feira, Bia Abramo, ex-editora do caderno (até 1995), teve artigo publicado no alto da pág. 4-5 que trazia já no título uma declaração de guerra: "'Vacas sagradas' orientam jornalismo cultural".

Abramo atacava entrevista sobre o filme ''Tieta'' com Caetano Veloso (autor da trilha sonora) e João Ubaldo Ribeiro (roteirista), publicada no último dia 29. Para ela, ''um blá-blá-blá inócuo, onde Caetano e Ubaldo trocam gentilezas, fazem seu merchandising pessoal''.

A resposta do editor Sérgio Dávila saiu no dia seguinte, sob o título ''Leitores, torcedores e jornalistas''. Com fleuma, concluiu que ''a jornalista não suportou ler uma entrevista isenta sobre um filme que odiou''. Dávila defendeu a separação entre opinião e reportagem como receita para o jornalismo cultural.

Para discutir se essa é mesmo uma opção para a Ilustrada, ou se representa seu empobrecimento, convidei para uma entrevista o próprio editor. Dou assim cumprimento à promessa feita aqui em 12 de maio, de recorrer à palavra original de editores para contar como é e se faz este jornal. Daquela vez foi com o editor de Opinião, Hélio Schwartsman. Agora, passo a palavra a Sérgio Dávila, 31 anos completados hoje. Eis os principais trechos da conversa:

*

Pergunta - Qual é a equipe da Ilustrada? Quantas pessoas trabalham lá e qual seu perfil?

Sérgio Dávila - É uma das maiores equipes do jornal se você contar os colaboradores indiretos. Contando tudo, são 30 pessoas. Colaboradores, mais metade disso, 15.

Pergunta - Qual é o perfil dessas pessoas que estão na redação da Ilustrada? Na cúpula, ali, é gente mais jovem ou mais experiente?

Dávila - O editor-adjunto é o Paulo Vieira, um jornalista que eu trouxe da ''Veja'' e se formou comigo na PUC. Tem 29 anos. O assistente é o Lúcio Ribeiro, que tem 32 anos e formação profissional no ''NP'' (''Notícias Populares'', do mesmo grupo que edita a Folha) e em revistas de música, também estudou comigo na PUC. E a Sylvia Colombo, que já está no jornal há uns dois anos e estava já na Ilustrada quando eu assumi.

Tem 24. Eu estava fazendo essa conta outro dia... um pouco mais da metade não estava na editoria na virada do ano.

Pergunta - Isso é um problema ou é uma vantagem?

Dávila - Confesso que no começo achei que poderia ser um problema, mas se revelou uma vantagem. Porque os vícios do jornalismo cultural, e como a Ilustrada é o maior caderno cultural, tinha muito ali...
Pergunta - Fale de sua formação intelectual e de sua carreira jornalística.

Dávila - Me formei em 88 na PUC, estudei também Letras na USP e História. Só me formei em jornalismo.

Até me formar, trabalhei como revisor free-lancer para revistas da Abril. Em 88 me formei e fiz o tal do curso Abril. Em janeiro de 89 eu comecei na revista ''Playboy'', fiquei dois anos, de onde saí quando era repórter especial. Fui para a ''Veja São Paulo'', como subeditor e lá fiquei também dois anos. Aí vim para cá, para a Revista da Folha. Em janeiro deste ano fui para a Ilustrada como adjunto, depois interino e editor efetivo, em junho.

Pergunta - Quais são os horários de fechamento da Ilustrada? E na batalha do fechamento, quanto você consegue ler do material publicado?

Dávila - A Ilustrada tem duas edições, Nacional e São Paulo. A Nacional fecha às 14h; a São Paulo, às 21h.

Das 21h até as 2h da manhã dá para fazer trocas. O editor-adjunto e uma redatora dão plantão. A Ilustrada fica sem gente praticamente só da 1h até as 7h da manhã. Eu procuro ler sempre a capa e a contracapa, os artigos, as colunas como Simão, e as matérias mais polêmicas. Política cultural, alguma denúncia.

Pergunta - Como é que você recebeu o artigo da ex-editora Bia Abramo? Não estava mesmo faltando na Folha mais debate sobre os rumos da Ilustrada?

Dávila - Eu acho esse artigo muito bem-vindo. Estávamos precisando dessa oxigenação, desse pluralismo, discussão. Jornalismo cultural é pouco discutido, se for pensar bem. Muito se discute sobre a maneira como os jornais cobrem a eleição, os crimes, a Escola Base, PC Farias, e pouco se discute sobre como os jornais cobrem a Bienal, o Free Jazz, a Mostra de Cinema.

Pergunta - Entrando no mérito do artigo, você não acha que existe de fato uma espécie de ''establishment'' protegido pelos cadernos de cultura? Vacas sagradas, como Caetano Veloso? Existe gente com coragem e estofo para criticá-lo?

Dávila - Com coragem, certamente. Ele é criticado, na própria Ilustrada. Talvez Caetano Veloso seja emblemático dessa ira de alguns... Ele não é uma unanimidade. Como editor, não tenho o rabo preso com esse ''establishment''. A Folha também não. Os repórteres também não, acredito eu. E se sei que tem, vou dar um jeito.

Pergunta - Sim, se critica pontualmente, há um show e se diz que tinha defeito aqui e ali. Mas não haveria uma certa dominância, talvez uma fraqueza da própria cena cultural, fazendo com que resquícios de um movimento como o tropicalismo permaneçam por tanto tempo, numa espécie de hegemonia?

Dávila - Sabe que eu ouço essa reclamação do outro lado, desses remanescentes do tropicalismo, dos expoentes do cinema brasileiro? Que o jornalismo cultural não fala deles, só fala das novidades, do cinema americano, do novo pop, que eles não têm lugar, que precisa de uma briga para eles aparecerem. Eu não digo a Ilustrada, mas acho o jornalismo cultural muito mais reverente ou subserviente ao Michael Jackson, ou à Madonna.

Pergunta - Jornalismo cultural é predominantemente crítica intelectual ou serviço de utilidade pública? Seria essa a crise de identidade de que você falou no artigo?

Dávila - É essa a crise de identidade. O jornalismo cultural é um mix de serviço e crítica. Há também as boas histórias, que você não citou, as reportagens, que não estão necessariamente ligadas a agenda. Para ser um pouco cabotino, vou citar uma capa que a gente deu, a ''Seattle dos Miseráveis'', um movimento punk que está surgindo ali no Alto Zé do Pinho, na periferia de Recife. É uma história que estava aí para ser contada.

Pergunta - Mas há uma espécie de juízo de valor aí, você acha que é alguma coisa que vale pena. Não só porque a história é boa, mas porque o produto cultural é relevante.

Dávila - É relevante, e é uma história que não está ligada à agenda nem à crítica. A saída para o jornalismo cultural é um mix dessas três coisas, esse é o projeto da Ilustrada. O que vinha acontecendo é que era só crítica, era só opinião, as reportagens vinham embaladas na opinião, no gosto do cara que estava escrevendo.

Pergunta - Eu fiquei com a impressão, no seu artigo, de que você fazia uma separação drástica demais entre reportagem e opinião. Parece esquisito um ombudsman falar isso, mas você não acha que isso exclui a possibilidade de ter um jornalismo cultural de interferência? Um trabalho de reportagem, sem dúvida, mas que contenha crítica, também, análise, que entre no mérito?

Dávila - Um jornalismo de interferência, sim; um jornalismo crítico, sim, que é o que a Folha quer. Mas crítico não é ''opiniático'', eu acho. Crítico, sim. O cara fala um absurdo e você contrapõe ali, na hora, você está com o mandato dos leitores, põe na parede, se for o caso. A gente não vai fazer release.

Pergunta - Vou dar um exemplo: O Nelson de Sá fez uma entrevista com o (Ariano) Suassuna, na capa da Ilustrada, e você vê que ali tem uma pessoa com conceitos, com idéias, com opiniões culturais relevantes e que dialoga com quem está falando. Não está ali só levantando a bola para ele cortar _como aliás eu acho que ocorre com boa parte das entrevistas com a fulaninha que é artista de cinema, ou com o cantor de rock que acabou de lançar um disco em Londres.

Dávila - É o ideal. É o que eu gostaria, o que estou montando dia a dia, com a direção do jornal, mas é demorado. É mais fácil para o repórter ouvir o disco e aí ele escreve 200 centímetros sobre o que ele achou, como a guitarra ''lancinante'' era maravilhosa. É mais fácil. Mas essa é uma crise do jornalismo todo, não é só da área cultural.

Pergunta - A velha Ilustrada acabou, passou sua época?

Dávila - Foi importante, me formou, eu comprava e lia ardentemente. Agora, era uma Ilustrada para menos pessoas, porque o jornal vendia menos, eram outras pessoas, outra realidade. Você não tinha Internet, não tinha 200 canais de TV paga, não tinha MTV. Hoje você vai lá na banca do Largo 13 e compra a ''Time Out''. Antes ficava dependendo do cara que ia para Londres e voltava com uma ''Time Out'' debaixo do braço e escrevia umas 20 capas.


Endereço da página: