Folha de S. Paulo


De que lado você está?

Já se disse que a função do jornalismo é dissolver unanimidades. Existe porém outra função, não menos nobre mas oposta, que é desatar o nó górdio de alguns debates públicos estéreis.

Infelizmente, os jornalistas hesitam demais em fazer uso da espada. (Na verdade, seria mais adequada a imagem de uma serra ou de uma lima, para acentuar o imperativo da persistência, nesta profissão.) É o que pretendo mostrar a partir de dois casos: a investigação da morte de PC Farias e a suposta onda de violência em São Paulo.

Sanguinetti x Badan

Na disputa de vedetes que se criou com a divulgação do laudo do legista Fortunato Badan Palhares, em primeira mão, pela revista "Veja", parece que os jornalistas ficaram do lado do perito alagoano George Sanguinetti. Ele é o maior esteio de todos os que não aceitam a versão de homicídio seguido de suicídio.

Sem Sanguinetti, o mistério PC morre de morte natural. Ele é o único com ousadia para continuar no jogo alto de Badan Palhares, e parece ter alguns trunfos não muitos na mão. Foi o que transpareceu da entrevista-acareação entre os dois legistas publicada quinta-feira no jornal "O Estado de S.Paulo" (outro furo invejável).

É uma pena que Sanguinetti tenha "piscado", como se diz na gíria do pôquer. No final do debate na sede do "Estado", dirigiu esta frase reveladora a Badan: "Tudo isso poderia ter sido evitado se o senhor tivesse me convidado para trabalhar no caso".

Os jornalistas, por seu lado, não têm sido felizes como coadjuvantes de Sanguinetti. Na segunda-feira, durante o programa "Roda Viva", Badan, o polêmico perito da Unicamp, até que se saiu bem do bombardeio cerrado. O clima estava impregnado por uma reportagem-denúncia da revista "IstoÉ", que apostou sua própria credibilidade numa "versão campineira da farsa alagoana". Badan disparou contra ela e para todos os lados com a arma que deveria estar na mão dos repórteres: conhecimento minucioso do laudo.

É fundamental, para a opinião pública brasileira (se é que isso existe), que jornalistas questionem o laudo de Badan. Mas não basta juntar meia dúzia de objeções pontuais a seu trabalho, assopradas por especialistas alijados do palco. É preciso ver se algum deles está minimamente próximo de uma reconstituição alternativa coerente, ou se apenas acrescentam um grão de sal ao caldo ralo da teoria da conspiração.

Não se deve descartar de antemão que isso possa ter ocorrido. No entanto, é errado que jornalistas se convençam a priori de que as mortes resultaram de um complô. É algo fantasioso acreditar que dezenas de envolvidos dos seguranças de PC ao impassível Badan estejam mancomunados com um gênio do mal a controlar os fantoches _a partir da Flórida, talvez? Nunca se sabe.

Falta investigação jornalística digna do nome. Seria bom começar tentando explicar a facilidade com que legistas de renome se prestam a atacar o autor do laudo, como faz seu ex-colega de Unicamp Nelson Massini ("conheço a cobra que criei", disse ele a "O Estado de S.Paulo"). A própria biografia de Badan e sua atuação em outros casos de conotação política podem dar boas pistas.

Na ausência disso, o público continua no seu estado normal _confusão, como bem diagnosticou o leitor Luiz Carlos Mendonça em carta ao ombudsman:

"Eis que no contexto babélico então formado surgiu a figura carismática e espirituosa do doutor Sanguinetti, dotado de conhecimento técnico e bom comunicador, dizendo aquilo que os jornalistas e a maioria da população estavam querendo ouvir. Pronto, juntou-se a fome com a vontade de comer e o legista alagoano transformou-se, instantaneamente, em celebridade nacional."

Foi esse, com efeito, o resultado prático do fraco desempenho jornalístico em torno do caso PC: mais uma personalidade e nenhuma verdade confiável.

Vítimas x d. Paulo

Bastou a concentração fortuita de alguns crimes estupidamente violentos envolvendo a classe média paulistana para eclodir um movimento logo batizado de Reage São Paulo. A iniciativa generosa partiu de familiares das vítimas, mas veio acompanhada de algumas vozes nada pacificadoras.

Para muita gente em São Paulo, a culpa cabe ao arcebispo da cidade, d. Paulo Evaristo Arns. Ele é identificado como o cérebro de uma outra conspiração, que defenderia "só os direitos humanos dos bandidos".
Isso equivale a dizer que o problema só se resolve com a pena de morte. De preferência, aplicada na rua mesmo pela Polícia Militar. Há muitas pessoas de classe média nostálgicas da Rota, mas elas se esquecem da mobilização há 20 anos contra o reinado dessa unidade-símbolo da truculência, quando andou executando alguns filhos dessa mesma classe média.

A obtusidade do argumento não impediu o próprio prefeito Paulo Maluf de proferir variantes dele (ainda que, de meu conhecimento, não tenha mencionado o cardeal). Desculpável apenas na boca de quem perdeu um familiar, essa besteira torna-se um verdadeiro delito de lesa-cidadania quando serve ao mero oportunismo eleitoral.

Na minha opinião, deveria ser condenado com veemência pela imprensa. É o tipo da situação em que não basta acomodar-se na contraposição de declarações bombásticas. Mesmo que se conceba a política e o espaço público atuais como um teatro, um jogo vertiginoso de palavras e imagens, é preciso alertar: quando campeiam sentimentos regressivos como o de vingança, corre-se o risco de ver triunfar a bestialidade, mais eficaz nesse domínio, e não a razão.

A Folha traz hoje em sua capa um editorial sobre a questão da violência urbana. Por sua tradição, será certamente um texto tolerante, equilibrado, destinado a produzir mais luz do que calor. Fica aqui um cumprimento antecipado pela tomada de posição e votos de que ela frutifique em muitas reportagens e outros editoriais, para esclarecimento dos leitores.

Mais um

A comunidade de advogados do público ganha mais um membro em São Paulo, e num veículo em que não conta com nenhum representante no mundo, segundo a Organização de Ombudsmans de Imprensa: o rádio. A emissora Bandeirantes AM, em que predomina a programação jornalística, escolheu o jornalista Marco Barrero, 43, para a função.
Boa sorte.


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