Folha de S. Paulo


Questões de sobrevivência

Os ombudsmans de imprensa estão preocupados com a própria sobrevivência. Um grupo de 35 deles reuniu-se entre os dias 5 e 8 na Filadélfia (leste dos Estados Unidos) para discutir problemas comuns e constatou que o maior deles pode ser o futuro. Mais exatamente, o futuro desses postos de vigilância sobre as redações.

A ameaça pode ser rastreada nos registros da Organization of News Ombudsmans (ONO), que preparou a convenção anual: dos 38 membros ativos que tinha nos EUA, hoje há 31. Muitos jornais, submetidos à pressão dos custos, cortam postos de trabalho que a miopia gerencial entende improdutivos, como o daquele fulano cuja única função é criticar.

A seu modo, estão certos. Ombudsman não dá lucro, não como o repórter pé-de-boi que cumpre três ou quatro pautas por dia e comete dois ou três erros em cada texto que escreve. Apontando falhas e ajudando a corrigi-las, essa figura só tem o que fazer naqueles jornais que ainda não conseguem orgulhar-se por se ver reduzidos a meros ''provedores de informação''.

Provedor por provedor, muita gente desconfia que um bom piloto de microcomputador pode realizar melhor o serviço de empilhar um monte de besteiras na frente do ''usuário''.

Por paradoxal que pareça: os jornais e revistas só vão sobreviver em papel ou qualquer outro suporte físico se continuarem investindo na única coisa que sabem fazer (nem todos, nem sempre): jornalismo, ou a arte de selecionar no caos dos dias anteriores aquelas informações relevantes para o cidadão. Neste campo, um ombudsman terá certamente cada vez mais trabalho.

Aposentadoria

Os defensores dos leitores também estão preocupados com o próprio futuro, no sentido individual. Tanto é que incluíram na pauta de Filadélfia uma sessão para que três deles, já fora da ativa, relatassem se há ''vida depois da aposentadoria''.

Uma explicação: nos EUA, o cargo de ombudsman costuma ser preenchido por jornalistas de longa experiência, no final da carreira. Há exceções, como Geneva Overholser (''Washington Post''), Miriam Pepper (''Kansas City Star'') e Shinika Sykes (''Salt Lake City Tribune''), mas a média fica na casa dos 50-60 anos, e a permanência na função pode estender-se por muitos outros, pois a maioria não tem mandato fixo.

Talvez pela presença dos associados mais jovens, o debate acabou derivando para outra perspectiva muito temida: o retorno à redação. Neste ponto, foi ouvido com atenção o relato dos representantes de três jornais do Brasil (Folha, ''AN Capital''/SC e ''O Povo''/CE), onde prevalecem o mandato de dois anos e a indicação de jornalistas de 40 anos para menos.

Por imprudência ou ingenuidade, mas também com base em sucessões anteriores, relatei que no caso da Folha não temo grandes sequelas.

O caso Incra

Há duas semanas, ficou prometido aqui que retomaria o caso da manchete da Folha de 29 de abril (''Incra deixa de utilizar crédito de US$ 4,5 bi''). Minha conclusão: foi mesmo um erro jornalístico grave.

A razão pôde ser encontrada pelo leitor numa reportagem de alto de página publicada pelo jornal cinco dias depois, sob o título ''Italiano tenta 'negócio da China' com país'' (pág. 1-11 de 4/5/96). A história simplesmente não parava de pé.

Em lugar do administrador incompetente sugerido pela manchete anterior, o então presidente do Incra, Raul do Valle, parece ter cumprido sua obrigação ao desconsiderar a proposta de um tal ''comandante Marcello'' em nome de um ''pool'' de bancos.

O negócio oferecido desobedecia todas as praxes de contratação de empréstimos externos pelo governo. Não foi levado a sério em nenhuma repartição brasiliense. Pelo menos um dos bancos negou qualquer participação.

''Precipitação''

Resta saber como isso chegou à manchete do maior jornal do país. A informação foi dada em ''off'' (quando a fonte pede para permanecer anônima) ao repórter Helcio Zolini, da Sucursal de Brasília. Este ouviu o outro lado do Incra, como manda o ''Novo Manual da Redação'', mas só por intermédio da assessoria de imprensa. Aí começaram os problemas.

Tudo indica que ocorreu um mal-entendido entre repórter e assessoria, porque esta respondeu sobre outro financiamento, de valor muito menor e relacionado com informatização do órgão. A explicação foi de que o caso estava parado por falta de verba de contrapartida por parte do Incra.

A Secretaria de Redação e a Sucursal de Brasília reconhecem que houve ''precipitação'' na publicação de informações que precisavam ainda ser apuradas mais a fundo. Foi essa conclusão que levou à publicação da segunda reportagem, expondo a fragilidade do ''negócio da China'' (na qual faltou mencionar que o assunto tinha sido o principal assunto do jornal).

Raul do Valle não é mais presidente do Incra. Na verdade, quando a manchete saiu, já balançava no cargo. Ele reconhece o empenho da Folha para esclarecer a questão, mas acha que a reportagem poderia ter sido mais explícita. Reclama também que o repórter deveria ter falado diretamente com ele, em face do valor inverossímil envolvido.

Com humor invejável, Raul do Valle que em outra oportunidade foi apresentado seminu num banheiro de aeroporto em foto da Folha resume sem ressentimento aparente o peso da manchete em sua demissão: ''Não vou dizer que teve papel determinante, mas a reportagem foi publicada num momento difícil para mim''.


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