Folha de S. Paulo


Iconoclastia de ocasião

Não se pode acusar a Folha por falta de arrojo ou criatividade. O jornal agora inventou a solução para o problema da reforma agrária no Brasil: distribuir as terras da Igreja Católica.

Foi o que propôs uma de suas manchetes mais enviesadas, em meses. ''Igreja poderia assentar mais de 20 mil famílias'', dizia o título principal do último domingo. O sobretítulo seguia o mesmo diapasão: ''Propriedades católicas incluem área suficiente para instalar todos os sem-terra''.

Um paraíso terrestre, despachando o equilíbrio para o quinto dos infernos.

Não vou entrar no mérito da animosidade ideológica da manchete, que parece evidente. Não é necessário. O trabalho era técnica e jornalisticamente deficiente, uma raridade em se tratando dos dossiês Tempo Real.

É melhor deixar de lado também traços cômicos da edição, como o emprego de fotos urbanas numa reportagem sobre terras. Na pág. 1-9, 462 centímetros quadrados e coloridos mostravam o fausto da igreja de São Francisco na Bahia, toda em ouro. Talvez fosse o caso de repartir tudo entre os pobres.

Regra de três

Quem leu a reportagem nas págs. 1-8 a 1-10 logo percebeu o erro implícito na aritmética jacobina da Folha. O jornal parece conhecer somente a regra de três: se o Incra recomenda 15 hectares por família, os 330 mil hectares supostamente da igreja resultariam em 22 mil assentamentos.

A própria reportagem informava que 9.582 das 11.801 propriedades tinham menos de 10 hectares, ou seja, não satisfaziam esse requisito mínimo. Isso para não tocar na questão da (im)produtividade.

''O cálculo é apenas teórico'', protestei na crítica interna da edição: ''Não acho que a igreja esteja acima do escrutínio público. Mas acredito que não é com mensagens pueris (...) que se vai explicar alguma coisa. Um bom material, empobrecido por uma edição tacanha''.

O pior ainda estava por vir. Anteontem, o jornal publicou o que parecia um ''outro lado'', inclusive com chamada de capa, com a versão da CNBB em nota oficial. A pág. 1-10 dava conta de que eram só 195 mil os hectares passíveis de distribuição, suficientes para 13 mil famílias. Mas talvez nem isso seja correto.

A reportagem da sexta-feira omitiu uma informação fundamental da CNBB. Logo no ponto 1, a nota deixa claro que as terras atribuídas à Igreja Católica pelo jornal são as identificadas pelo Censo Agropecuário de 1985 como pertencentes a ''instituições pias e religiosas'', em geral. Nem todas, portanto, seriam propriedade católica.

''Houve falha de não incluir o trecho na reportagem'', diz Eleonora de Lucena, secretária de Redação. O jornal planejava reconhecer o erro na edição de ontem, mas na noite de sexta decidiu verificar a informação da CNBB, antes de assumi-la como fato. A reportagem ficou adiada para terça-feira.

Não dá para criticar a Folha por enfim fazer a coisa certa. Mas é inescapável anotar que só se dispôs a fazê-lo no momento de penitenciar-se. Será difícil convencer leitores ressabiados de que a primeira pedra foi atirada apenas por distração ou imperícia, não de propósito.

Pelo telefone

Na terça-feira, em Tóquio, foi o próprio jornal que virou vidraça, mas deu a volta por cima pondo a boca no trombone. Publicou no dia seguinte, na pág. 1-8, a reportagem ''Motta faz acusações contra a Folha''. E deu conta de provocação lançada pelo ministro das Comunicações na presença de vários jornalistas brasileiros.

Sérgio Motta, em resumo, disse que a Folha iria perder sua independência porque participa de consórcio que concorrerá para a operação de telefonia celular em São Paulo. O próprio jornal tinha noticiado, dias antes, que se associara ao Unibanco e à Odebrecht com essa finalidade.

Na resposta a Motta, a Folha disse que participa somente por se tratar de um leilão, o que deveria afastar pressões políticas. E devolveu a suspeita à incontinência do ministro: ''Existe, no governo, o desejo de usar as licitações como meio de chantagem e de intimidação''.

Uma boa resposta para uma declaração leviana. Os fiscais da independência da Folha são seus próprios leitores, que tomaram tanto quanto Motta conhecimento de mais essa investida empresarial. Se cometer a burrada de atrelar seu jornalismo a interesses comerciais, o jornal estará dilapidando seu maior patrimônio: credibilidade.


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