Folha de S. Paulo


Desestatizar o noticiário

A expressão ''desestatizar o noticiário'' frequenta as reuniões de jornalistas da Folha há anos. Foi originalmente lançada por dois então diretores da Sucursal de Brasília, Gilberto Dimenstein e Josias de Souza, que propunham ao jornal romper com a dependência histórica do material produzido por aquela sucursal para sustentar manchetes. Esta semana, a Folha deu um bom exemplo do que isso pode significar.

Trata-se da manchete (título principal da primeira página) publicada na quinta-feira, ''SP tem 219 homicídios no Carnaval''.

Naquele dia, ''O Estado de S.Paulo'' apresentava mais uma de suas costumeiras manchetes econômico-otimistas (''Liquidações de verão aquecem vendas''). Não deixa de ser uma variante do jornalismo ''estatizado'', que vê o país somente pelo prisma da economia e da política. ''O Globo'' e ''Jornal do Brasil'', no Rio, ainda celebravam o Carnaval e a vitória da Mocidade Independente. O dilúvio pós-Michael Jackson já era água passada.

Vergonha e medo

Foi o leitor da Folha, assim, que teve acesso à notícia mais importante do dia. Ela deu muito mais o que falar e pensar do que a vitória da Vai-Vai ou o rebaixamento da Camisa Verde e Branco.

O jornal não deixou de apresentar essas informações na capa, bem no alto. Teve no entanto a sensibilidade de destacar uma notícia trágica, na contramão de todo otimismo monetário que emana de Brasília. Ela deveria encher de vergonha e revolta os paulistas, e não só de medo.

Alguns leitores, e mesmo jornalistas, reclamam que o ombudsman deve também fazer elogios, não só criticar. Ei-lo: a Folha fez a sua parte, pondo a boca no trombone. Agora é com você, leitor.

Nova Folha

Circula com a edição de hoje um caderno especial apresentando a reforma gráfica que a Folha estréia no próximo domingo. A edição São Paulo do jornal passa a ter cores em 75% de suas páginas, o que só acontecerá em agosto com os jornais que vão para o interior e outros Estados (edição Nacional).

Já defendi o uso da cor nesta coluna, na véspera da inauguração do Centro Tecnológico Gráfico-Folha, alicerce industrial de toda essa transformação. Estou convencido de que o recurso pode incrementar a funcionalidade e o teor de informação do jornal (nas fotos e nos quadros, antes de mais nada), se bem usado.

O aperitivo apresentado no caderno ''Nova Folha'' aponta claramente nessa direção.

O teste do pudim, como se diz, é comê-lo. Aguardo portanto a estréia da roupa nova, antes de qualquer juízo, mesmo porque a reforma implicará múltiplas mudanças no jornal. Seus efeitos sobre os leitores são até certo ponto imprevisíveis.

Peço a todos que leiam a Folha com uma lupa crítica, a partir do dia 3, e manifestem ao ombudsman suas avaliações. Prometo voltar ao assunto na coluna do dia 10. Por enquanto, aproveito para bater numa velha tecla: na base de tudo tem de estar a informação jornalística, aquela que nasce da combinação de reportagem com inteligência.

Ainda o IPC

O já complicado novelo do Instituto de Previdência dos Congressistas (IPC) enrolou-se mais um tanto anteontem, com a publicação de um artigo do deputado Antonio Kandir (PSDB-SP) na pág. 1-3 da Folha.

O tucano, parceiro de Zélia Cardoso de Mello no confisco da poupança que abriu o governo Collor, apresentou uma justificativa original para o apoio à proposta do colega Nilson Gibson (PSB-PE) sobre o IPC. Para Kandir, a supressão do famigerado artigo 15 do relatório facilitaria a extinção do instituto e suas privilegiadas aposentadorias.

Convincente no domínio abstrato, na arena concreta da política o artigo de Kandir não derrota a suspeita de que foi produzido sob medida. Afinal, a interpretação só veio a público depois da polêmica lista de apoiadores na Folha do último dia 15. Mas a publicação do texto tem o mérito de fazer avançar o debate, como cobrei do jornal na semana passada.

Na pág. 1-2, quase ao lado do artigo tucano, a Folha trazia o editorial ''Privilégio e descuido''. Leia o terceiro parágrafo do texto de opinião do jornal:

''Eis que agora alguns parlamentares apontam, com argumentação bastante convincente, que é mais fácil extinguir o IPC suprimindo a exigência de discutir o assunto um ano após a reforma da Previdência, ou seja, endossando o destaque de Gibson. Isso evitaria que o IPC ganhasse status constitucional, podendo ser extinto por lei ordinária.''

Na mesma página em que saiu o texto de Kandir, o Painel dos Leitores trazia a enésima explicação de deputado arrolado pelo jornal como defensor do IPC. A novidade estava na ''Nota da Redação'' que vinha sendo apensada às cartas. Foram suprimidas as últimas e mais fortes linhas do texto-padrão (as quais indico entre parênteses):

''A reportagem da Folha considerou como manifestação de apoio ao IPC as assinaturas dos deputados no documento de 'apoiamento ao destaque supressivo do artigo 15 do substitutivo'. Tal artigo determina a discussão de mudanças no sistema de aposentadoria dos parlamentares, no prazo de um ano após a reforma da Previdência. (Ou seja, o pedido do deputado Nilson Gibson, endossado pelos colegas, não era para debater melhor o assunto, mas justamente para evitar a discussão, retirando o artigo do texto da reforma.)''

Benefício da dúvida

Essa combinação de textos nas páginas nobres do jornal artigo, editorial e Nota da Redação encurtada pode deixar nos leitores a impressão de que teria ocorrido um recuo, disfarçado, em relação à lista. Para afastar essa suspeita, levei a discussão ao diretor de Redação. Ouvi de Otavio Frias Filho a seguinte explicação:

''A posição do jornal está no editorial de hoje (23/2/96). A alteração da nota se deve a que, diante da argumentação de Kandir, se deve admitir o benefício da dúvida, no terreno das motivações subjetivas.''

De fato, é impossível verificar se algum deputado assinou o requerimento com o próprio punho e as motivações de Kandir. Ou, o que parece mais provável, se não foi com segundas intenções (as primeiras de Gibson) _como aliás afirma o editorial ''Privilégio e descuido''.

Assim como ao diretor de Redação, não me resta dúvida de que, noves fora, foi acertada a publicação da lista. Mas essa convicção merecia defesa mais vibrante e aberta por parte do jornal do que a misteriosa supressão daquelas linhas no Painel do Leitor. Pela simples razão de que esta seção é lida por muito mais gente do que os editoriais.


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