Folha de S. Paulo


Mais respeito

Trabalhar cansa, dizia um poeta italiano que li pouco, e mal, por sugestão de um grande amigo. O pior não é o cansaço físico, mas a fadiga moral que poreja com a repetição de uma tarefa, subitamente esvaziada de todo sentido. Trabalho de Sísifo, no singular, não proezas hercúleas e libertadoras.

Permita o leitor este pecadilho jornalístico, o do nariz-de-cera (introdução que não introduz, mas rodeia o tema). Foi preciso cometê-lo para transmitir de uma vez o abatimento provocado pela leitura das reportagens de quinta-feira sobre os casos Vera Fischer e Politécnica. É duro de aceitar que jornais possam descer tão baixo.

A imprensa brasileira é ruim. Péssima. Não tanto quanto há 10 ou 20 anos, mas ainda se permite momentos de intensa baixaria. Jornalistas desconhecem regras elementares de respeito. De outro modo, como explicar que publiquem, com evidente intenção jocosa, uma enxurrada de preconceitos sobre a atriz e sua ex-empregada, como fez a Folha há três dias?

Tiroteio

A ''repercussão'' saiu na pág. 3-6 da edição São Paulo/DF, sob a rubrica ''Tiroteio''. Omito os nomes, que foram no entanto publicados pelo jornal, porque nada tenho contra essas pessoas escolhidas a esmo, só contra suas palavras impressas:

''Ela é a maior canalha. Se estava insatisfeita com a empregada, deveria mandá-la embora, mas nunca agredir. O problema é que ela morre de ciúme do marido, está desequilibrada e descontou na empregada'' (A.C.G., 38, etc.).

''Tinha de apanhar mesmo, faltou dois dias ao trabalho e não disse nada. Empregada é assim, só eu sei o que já sofri. A Vera Fischer estava certa, chamou a babá para conversar no quarto e só se defendeu'' (H.N., 36, etc.).

O título principal daquela página dava uma idéia da situação da família, ou do que dela sobrou: ''Ela deve estar maluca, diz ex-marido''. Na Primeira Página, título mais discreto informava: ''Felipe rebate acusação de Vera Fischer''.

Mãos de tesoura

Na crítica interna da edição de quinta, documento que circula no início da tarde para todos os jornalistas da Folha, protestei também contra a publicação e o modo como foi editada carta-trocadilho do leitor Paulo Azevedo: ''Do jeito que vão as coisas, a Vera Fischer acabará sendo conhecida como Fera Fischer''. No alto da segunda coluna do Painel do Leitor, trazia o título ''Garras'' e uma charge de Adolar em que a atriz empunha uma tesoura.

Na pág. 6 (Opinião) do jornal fluminense ''O Globo'', Vera Fischer foi caracterizada em desenho de Aroeira como o Edward Mãos-de-Tesoura do cinema (a mesma e infeliz associação usada pela revista ''IstoÉ'' de anteontem). Mais adiante, o diário informava, com um pouco mais de detalhes do que a Folha, que outro ex-marido de Vera, Perry Salles, se abalara de Salvador para ajudar a mãe de sua filha de 16 anos.

O ''Jornal do Brasil'', também do Rio, conseguiu muito mais detalhes sobre o caos na vida e na casa da atriz.

Detalhes demais. Cheguei a elogiar a reportagem, na crítica interna, mas um pouco mais de reflexão mostrou que se tratava do mesmo tipo de invasão abusiva, ainda que com o sinal trocado (pieguice em lugar da ridicularização punitiva).

Voyeurismo

A chamada de capa ''Vera Fischer precisa de ajuda'', no ''JB'', começava com uma descrição constrangedora:

''Na mansão da rua Iposeira, no Joá, o clima é de fim de festa. Desde a comemoração do aniversário de 44 anos de Vera Fischer, há 15 dias, a casa não foi arrumada. As flores estão murchas nos vasos. No banheiro, permanece o pedido para que os convidados mantenham a limpeza''. E por aí vai.

O voyeurismo do público não tem limites. Mas deve haver algum para a disposição da imprensa em satisfazê-lo. Caso contrário, é melhor fazer logo mais uma emenda constitucional (são tantas...) para eliminar o direito fundamental à intimidade e à vida privada (artigo 5º, inciso X).

O ''Novo Manual da Redação'' da Folha faz uma clara opção pelo direito à informação, quando em conflito com o direito à privacidade, mas com uma ressalva que poucos jornalistas levam em consideração:

''Em princípio, o direito à informação deve prevalecer sempre que se tratar de assunto relevante e em especial quando envolver personagens públicas'' (pág. 41; no parágrafo anterior, as ''personagens públicas'' são identificadas como governantes, cujas decisões ''são pautadas em parte por características de personalidade e elas afetam a vida de todos os seus governados'').

Nada há de relevante para a vida pública nos desatinos de Vera Fischer. Mas jornais ditos de prestígio como a Folha e seus concorrentes, por omissão ou vontade própria, preferem colocar-se à margem de prescrições éticas tão simples e evidentes quanto esta, da Sociedade de Jornalistas Profissionais dos EUA: ''Os meios de comunicação não devem alimentar a curiosidade mórbida sobre detalhes do vício e do crime''.

Carniça

Talvez inspirado por Fernando Henrique Cardoso e seus corvos-urubu, o pai do rapaz Christian Hartmann estudante que matou a tiros na Escola Politécnica da USP a colega Renata Cristina Francisco Alves, matando-se em seguida soltou o verbo e os cachorros sobre a imprensa: ''Uma coisa é informar. Outra é pular em cima da carniça''.

Ele se referia às especulações sobre a sanidade do filho que matou e morreu, as quais assumiam proporções de um inquérito. Entre outras pessoas, as suspeitas tinham sido lançadas pela mãe da moça morta. Um dos textos da pág. 3-4 apresentava relato de outro ex-namorado em que Renata era sutilmente descrita como leviana.

A Folha acreditou talvez estar cumprindo à risca seu ''Manual'' ao encher o texto de aspas ''normal'', ''maluco'', ''estranho'', ''indícios'', como se objetividade fosse um atributo mágico de sinais gráficos. Na crítica interna, anotei:

''É um amontoado de fuxicos e acusações impensadamente lançadas por pessoas dilaceradas, que estão tentando entender a tragédia, algo por definição impossível. (...) Quem é o sr. Alex Orágio para pontificar sobre a conduta de Renata Alves, que está morta? (...) Se a Folha critica a polícia por lançar suspeitas sobre vítimas de estupro, não deveria seguir por trilha tão próxima''.

A imprensa brasileira é ruim porque quer. Essa atração tão resistível pelo mórbido é o mais facilmente superável de seus defeitos. Basta não perder de vista que as personagens de notícias, antes de personagens, são pessoas.

Respeitá-las não é frescura dos politicamente corretos, mas imperativo constitucional, da ética jornalística e do ''Novo Manual da Redação''.


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