Folha de S. Paulo


Pessoas e personagens

"A viúva do empresário assassinado Agenor da Silva Borges, Matilde, foi absolvida anteontem pelo juiz Roberto Solimene, da Vara do Júri de São Bernardo (ABCD). Ela era acusada de envolvimento na morte do marido, assassinado a tiros em 5 de dezembro de 94. O advogado da viúva, Paulo de Souza, afirma que Matilde deve pedir indenização pelos 46 dias em que ficou presa."

Treze linhas de texto, treze centímetros de coluna. Isto foi tudo que a Folha reservou para o desfecho de um caso de grande repercussão.

Na crítica interna da edição, protestei contra o laconismo do registro. "Apesar de ter saído numa capa de caderno e com foto, você tem toda razão. A notícia merecia destaque maior", disse-me anteontem a secretária de Redação responsável pela área de Edição, Eleonora de Lucena.

A nota publicada sob a rubrica "O Personagem", na capa do terceiro caderno de quinta-feira, não mencionava sequer o destino ou o paradeiro da filha, K.B., 17. Como a mãe, ela tinha sido acusada de tramar a morte do pai e terminou recolhida a uma unidade da Febem.

O caso rendeu muitas manchetes internas, até chamada na primeira página da Folha (em 7 de dezembro, quando o assassinato foi noticiado). Ao todo, mais de 120 cm de textos, sem contar fotos, títulos, quadros etc.
Um belo barulho.

O suposto crime em família era o terceiro de uma série iniciada havia menos de dois meses. Antes dos Borges, de São Bernardo, a tragédia tinha alcançado os Pissardos, de São José dos Campos, e os Oliveiras, de Porto Alegre. Dois parricídios frescos, como que a espessar a verossimilhança de um tipo de crime com longa tradição literária. Desta feita, com a participação de mulheres.

Era o chamado prato cheio. Só que de uma comida malcozida e maltemperada, para não dizer malcheirosa. Os jornalistas dela se serviram com modos adequados: as duas mulheres foram tratadas o tempo todo, pelo menos na Folha, como suspeitas, acusadas etc.

Alexandro Silva, o "Café", autor confesso dos cinco disparos na cabeça do empresário, desde o início da investigação dera depoimentos contraditórios sobre o envolvimento de mãe e filha. Afirmou que conhecia K.B., fato nunca negado pela moça, e que tinha estado em sua casa mais de uma vez. O assassinato teria sido uma sugestão dela -cinco meses antes.

Em um dos depoimentos, porém, Café confessara motivo mais plausível para matar Borges: durante o roubo, este teria reconhecido o amigo da filha. Em entrevista publicada no mesmo dia 7 de dezembro pela Folha, Café inocentara a garota, admitindo: "Ela falou isso de brincadeira".

A hipótese dramática do assassinato em família, porém, prevaleceu na investigação policial. Como no caso da Escola Base, o escandaloso se sobrepôs ao justo (pois nessa condições é difícil falar em "verdadeiro"). Matilde foi para a cadeia e K.B., para a Febem.

A Folha, apesar de editar já no dia 8 de dezembro uma lista das contradições do caso, não soube explorá-las.

Foi, por assim dizer, mediocremente correta. Foi incapaz de questionar mais profundamente o trabalho de policiais, promotores e juízes -a exemplo do que faz com artistas, parlamentares, esportistas e até com o presidente da República. Seu grande mérito foi publicar em 28 de janeiro uma entrevista com a cabeleireira Matilde, na qual esta dizia:

"A imprensa nunca se preocupou em ouvir o meu lado. Ninguém perguntou o que eu sentia com a perda do meu marido, com os meus sentimentos. Os jornais só se preocupam com o diz-que-diz dos outros."

Devo ao leitor uma explicação sobre o título, "Pessoas e personagens". Senti-me humana e solidariamente ofendido com a frivolidade da rubrica a que foi reduzido o desenlace da tragédia dos Borges: "O Personagem".

É assim que os jornalistas enxergam as pessoas que tiveram o azar (em alguns poucos casos, a sorte) de cair na sua malha de palavras e imagens, conceitos e preconceitos. A expressão "personagem da notícia", aliás, está consagrada como verbete no "Novo Manual da Redação" da Folha (pág. 40).

No entanto, nenhum jornalista deveria esquecer que na outra ponta de suas narrativas pobres estão pessoas.

De carne e osso, como assegura o lugar-comum. Pessoas com direitos, dignidade, pudor, amor-próprio.

Apesar da clara distinção entre as palavras pessoa e personagem, na língua atual, é curioso notar que a confusão tem raízes profundas. Ambas procedem do latim "persona", que originalmente designava máscaras de teatro.
Esta promiscuidade etimológica não deveria ser tomada como uma justificativa, mas sim como um aviso.

À parte a esqualidez informativa, o texto era carente também de precisão. Diz que Matilde foi "absolvida" pelo juiz. Na realidade, ela foi "impronunciada", ou seja, o juiz decidiu que ela não deveria ser levada a julgamento.

Na mesma quinta-feira, durante a primeira entrevista coletiva do presidente Fernando Henrique Cardoso, a Folha protagonizou um episódio de constrangimento jornalístico. Seu representante na entrevista fez a última questão:

"O que o cidadão Fernando Henrique faria se recebesse mensalmente um salário mínimo de 70 reais?"

Levou o troco no ato:

"A mesma coisa que você."

Alguns leitores procuraram o ombudsman para discutir o caso, alguns contra, outros a favor do atrevimento.

Queriam saber a origem da pergunta, se fora iniciativa do repórter ou contava com o aval de seus chefes. E, claro, queriam uma opinião.

Quanto ao primeiro ponto: a secretária de Redação Eleonora de Lucena informa que, como de praxe, a pergunta dirigida ao presidente fora "aprovada integralmente" pela Direção de Redação. Mais precisamente, era a primeira de três opções a que o jornalista deveria ater-se (uma precaução face à possibilidade de que uma delas fosse apresentada antes).

Agora, a opinião. Por princípio, discordo de que existam perguntas cabíveis e incabíveis. Todas são legítimas, à luz da liberdade de expressão e do direito à informação. A única restrição que admito é a da civilidade.
O repórter não faltou com a educação, ainda que o sentido provocador tenha sido evidente. Como toda provocação, teve sua dose de simplismo. Mas teve também o mérito de pôr entre parênteses, por um átimo, todo o nhenhenhém macroeconômico, levando para o centro do picadeiro a pergunta que ninguém faz porque ninguém, nem o presidente de tantas letras, tem resposta.

Até quando?


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