Folha de S. Paulo


No cerrado, garantia de água vem do capim, não de árvores

Flávia Davies/ICMBio
Paisagem devastada por incêndio na Chapada dos Veadeiros, em Goiás
Paisagem devastada por incêndio na Chapada dos Veadeiros, em Goiás

Duas semanas atrás neste espaço, a coluna intitulada "Bye bye cerrado" chamou atenção para a destruição acelerada da savana brasileira, a mais biodiversa do planeta. Como argumento em favor de sua preservação, indicou o papel destacado dessa formação vegetal para os recursos hídricos do país.

O argumento estava correto, mas não a explicação oferecida, alerta Giselda Durigan, pesquisadora do Instituto Florestal de São Paulo.

A coluna dizia: "Sem mata, a água da chuva escorre mais rápido sobre o solo, deixando de infiltrar-se terra adentro para alimentar as nascentes e regularizar o fluxo dos rios.".

O equívoco, segundo a especialista, está em associar a produção de água no cerrado com a presença de árvores, como fica implícito na referência a matas e florestas. Embora elas sejam importantes para o ciclo hidrológico em escala planetária, no plano das bacias hidrográficas não é bem assim -sobretudo no cerrado.

As copas das árvores, em realidade, interceptam a água da chuva e devolvem parte dela à atmosfera por meio da transpiração. Grosso modo, quanto mais cobertura arbórea, menos água se infiltra no solo para alimentar nascentes e rios.

Foi o que mostrou artigo de Durigan e sua colega Eliane Honda publicado em agosto de 2016 no periódico científico "Philosophical Transactions B", da Real Sociedade britânica. Há também um artigo seu em português sobre o assunto, "A Restauração de Ecossistemas e a Produção de Água".

Elas mediram o escoamento de água em várias áreas de cerrado com densidades diversas de cobertura arbórea. Constataram que, para cada metro quadrado a mais por hectare de solo ocupado por árvores, diminuía em cerca de 1% o líquido precipitado que chegava ao chão.

O correto seria ter falado, na coluna, em cobertura vegetal, e não em matas, florestas ou árvores. Pois o elemento mais característico do cerrado, e das savanas em geral, está na presença do capim. Neste caso, são as gramíneas, não as espécies arbóreas, que previnem o escoamento superficial (evitando portanto a erosão) e garantem a infiltração no solo.

O capim se associa ainda a outra marca crucial do cerrado, o fogo. Num bioma com estação seca bem definida, ele se incendeia com facilidade nesse período, bastando para isso apenas um raio.

O surgimento das savanas, ressaltou num artigo de 2009 Marcelo Simon, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, coincidiu com a disseminação de gramíneas pelo planeta entre 4 milhões e 10 milhões de anos atrás. Com incêndios recorrentes durante milênios, as plantas se adaptam ao fogo, pois sobrevivem melhor aquelas com cascas mais resistentes, por exemplo.

A consequência, raciocinam Honda e Durigan: está errada a política de impedir o fogo no cerrado e de adensar sua vegetação com o plantio de árvores.

Se a intenção for preservar sua diversidade e a produção de água, é melhor manejá-lo de forma racional, impedindo que saia de controle como no recente incêndio na Chapada dos Veadeiros.

Quem diria?


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