Folha de S. Paulo


Obtusidade 7 x 1 Objetividade

Apu Gomes - 22.jan.2013/Folhapress
Bolivianas continuaram trabalhando durante fiscalização do Ministério Público do Trabalho de Campinas, que recebeu denuncias da Polícia Federal sobre uso de trabalho degradante
Bolivianas continuaram trabalhando durante fiscalização do Ministério Público do Trabalho de Campinas, que recebeu denuncias da Polícia Federal sobre uso de trabalho degradante

Você sabe que um país chegou ao fundo do poço quando o presidente da República reduz o debate sobre trabalho degradante à colocação de uma saboneteira. Assim se comportou Michel Temer (PMDB) em entrevista ao noticioso Poder360.

A declaração do presidente é obtusa, no sentido de confusa, rude, rombuda. Espalha confusão sobre as normas que regem a contenção do problema, é rude com os trabalhadores submetidos a condições degradantes e abre um rombo na autoridade dos fiscais de trabalho de seu governo que labutam para civilizar um pouco as práticas da bancada ruralista engajada na mudança da legislação.

Temer desce até onde desceu –condicionar à restrição da liberdade de ir e vir qualquer autuação por trabalho análogo à escravidão– porque precisa dos votos ruralistas para evadir-se de um processo. Simples assim.

É o primeiro de sete exemplos frescos de como a obtusidade militante vem contundindo o debate público, com flagrante desprezo pela objetividade, se não pelo senso humanitário que deveria pautar as políticas públicas.

1. Saboneteira - O presidente pinçou 1 dos 44 autos de infração lavrados mais de seis anos atrás contra a Construtora MRV numa obra em Americana (SP). Leio no jornal "O Globo", porém, que entre os documentos omitidos por Temer apontavam-se desde falta de fornecimento de água potável e fresca a atraso de salários e retenção de carteira de trabalho.

"Usar a informação que se configurou trabalho escravo por falta de saboneteira ou apoio para toalhas deturpa e desqualifica o nosso trabalho. Usou informação completamente descontextualizada, parece que somos levianos", disse à repórter Cássia Almeida o procurador do Trabalho Silvio Beltramelli Neto.

2. Devastação - O ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho (PV), nega que tenha havido retrocesso ambiental no governo Temer. Seu álibi é a queda de 16% na área desmatada da Amazônica entre agosto de 2016 e julho de 2017, totalizando 6.624 km2 de corte raso na floresta.
Faltou ponderar que essa destruição ainda é muito alta e só caiu porque havia aumentado demais nos anos anteriores -com exceção de 2016 (7.893 km2), ficou acima de todos os anos após 2010. Também está longe dos 3.500 km2 anuais com que o governo federal se comprometeu.
Planalto e ruralistas se comprazem em dizer que a agricultura não precisa desmatar para crescer, mas ninguém defende a decorrência lógica e óbvia: estabelecer como meta o desmatamento zero.

3. Farinha - O prefeito João Doria Jr. (PSDB) faz propaganda de um alimento granulado que amalgama alimentos a ponto de perder o prazo de validade com uma distorcida mitologia católica sobre fome. Diz que a farinata é abençoada. Promete incorporá-la à merenda escolar como complementação nutricional, com as bênçãos de dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo.
Entretanto: a merenda não precisa de complemento, mesmo porque ninguém sabe qual será a composição do granulado; não se conhece quantas pessoas realmente passam fome na capital, só que são poucas e certamente não estão nas escolas; nem a prefeitura nem a tal de Plataforma Sinergia que inventou a gororoba têm um plano para fabricá-la e distribuí-la, embora digam que sairá de graça para o município e para os doadores.
Vão precisar de intervenção divina para multiplicar a farinha.

4. Venezuela - Leio na Folha artigo do jornalista Breno Altman no qual ele afirma: "O governo de Nicolás Maduro [...], ainda que enfrentando escalada de violência, atuou relativamente com mais moderação que o primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, responsável por brutal repressão às pacíficas manifestações catalãs e a quem nenhum veículo de comunicação chama de ditador".

Altman considera a Venezuela um exemplo de democracia popular, assim como a senadora Gleisi Hoffmann (PT). Mesmo quem não derrete de amores pela oposição venezuelana, contudo, aceitará o absurdo factual de comparar uma centena de mortos em seus protestos com a truculência da polícia de Rajoy, que bateu em muitos, rudemente, mas não matou ninguém.

5. Fé tucana - Aécio Neves (PSDB) quer fazer crer que há defesa possível para um senador da República pedir empréstimo pessoal de R$ 2 milhões a alguém com a biografia, a fama e os métodos de Joesley "JBS" Batista. Convenceu por ora 44 senadores, mas todos sabem que não agem de boa fé.

6. Masp - Pareceu um ato de coragem do Museu de Arte de São Paulo abrir uma exposição chamada "Histórias da Sexualidade" em meio à tempestade moralista semeada e colhida por conservadores de meia tigela por causa de meia dúzia de quadros e instalações. Não foi.

O evento já estava em planejamento desde 2016. E a direção do Masp em realidade acovardou-se: proibiu a entrada de menores de 18 anos mesmo que acompanhados pelos pais. A proibição é não só inédita como está em flagrante conflito com a Constituição.

7. Testosterona - Ciro Gomes (PDT-CE), eterno aspirante marginal à Presidência da República, descartou uma eventual candidatura de Marina Silva (Rede) dizendo que o momento vivido no país precisa de testosterona. Marina está pelo menos dez pontos percentuais à frente de Ciro nas pesquisas de intenção de voto.

A interpretação mais benigna da imprecação do pedetista reza que ele confundiu testosterona com histamina, e não que tenha resvalado mais uma vez para o machismo ao estilo "a função dela é dormir comigo".

1. Mais luz - Para não concluírem desta coluna que o poço não tem fundo, destaca-se aqui a clareza de Flávia Piovesan, secretária nacional de Cidadania do governo Michel Temer. Já de saída do cargo, fez publicar nota sobre a polêmica do trabalho degradante em que afirma, objetivamente:

"A Portaria 1.129, por meio de seu art. 1o, reduz drasticamente o alcance do conceito de trabalho escravo, ao praticamente limitá-lo às situações de restrição de liberdade e de escolta armada, esvaziando o núcleo elementar de condições degradantes e jornada exaustiva, em direta ofensa ao artigo 149 do Código Penal".


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