Folha de S. Paulo


Por que um periódico científico aceita um artigo moralmente impalatável?

Parece inacreditável, mas ainda há quem defenda o colonialismo. Não seria nem notícia, pois não faltam celerados no mundo, se não se tratasse de um artigo acadêmico publicado num periódico respeitável de política internacional, "Third World Quarterly".

Basta dizer que, no conselho editorial da revista, figura Noam Chomsky. Esta coluna não foi capaz, contudo, de encontrar manifestação do linguista e paladino do anti-imperialismo a respeito do artigo. Seu colega de conselho Vijay Prashad ameaçou publicamente renunciar.

O trabalho de Bruce Gilley, da Universidade Estadual de Portland, Oregon (EUA), carrega o mesmo título desta coluna. Na sexta-feira (15) de manhã, um abaixo-assinado pedindo à revista sua retração ("despublicação", por assim dizer) contava 7.649 apoiadores.

Os que assinaram a petição esclarecem que não se trata de tolher a liberdade de expressão do autor, cientista político declaradamente conservador, mas de cobrar-lhe padrões acadêmicos mais elevados.

"O artigo carece de evidência empírica, contém imprecisões históricas e inclui falácias desprezíveis. Há também uma carência enorme de rigor e de consideração com a literatura existente sobre o tópico", justificam.

Traduzo aqui o resumo do artigo de Gilley, para dar ao leitor uma ideia de seus argumentos, se é que podem ser chamados assim.

"Nos últimos cem anos, o colonialismo ocidental gozou de má fama. É chegada a hora de questionar essa ortodoxia. O colonialismo ocidental, como regra geral, foi tanto objetivamente benéfico quanto subjetivamente legítimo na maioria dos lugares em que se encontrou [sic], usando-se medidas realistas desses conceitos. Os países que abraçaram sua herança colonial, de maneira geral, se saíram melhor do que aqueles que o repudiaram."

Segue o autor: "A ideologia anticolonial impôs graves danos aos povos sujeitados e continua a tolher o desenvolvimento sustentado e um encontro frutífero com a modernidade em muitos lugares. O colonialismo pode ser recuperado em Estados fracos e frágeis, hoje, de três maneiras: recuperando modos coloniais de governança; recolonizando algumas áreas; e criando novas colônias ocidentais do zero".

No quesito do benefício objetivo legado por colonizadores, Gilley inclui a administração racional, tecnologia agrícola, saúde pública e –talvez para provocar feministas– reconhecimento dos direitos das mulheres. Argumenta que essas coisas não seriam promovidas por monarcas e chefes tribais das sociedades tradicionais se estas não tivessem sido subjugadas.

Na questão da legitimidade subjetiva, afirma que anticolonialistas escamoteiam que muitos povos dominados demandavam e apoiavam a dominação. Os grupos que lutavam por independência seriam minoritários, e teriam acabado por infligir mais mortes e sofrimento a seu povo do que se não houvesse rebelião.

É de doer. Não cabe nem recomendar um mergulho no texto, para o leitor aquilatar os exemplos de Gilley. Um bom resumo de sua posição seria: o que são algumas atrocidades, aqui e ali, em face do progresso civilizacional propiciado pelo colonizador?

Uma pergunta de sabor bolsonarista, que poderá fazer salivar os utilitaristas e pragmáticos sem noção. A verdadeira questão é: por que um periódico supostamente científico se presta a isso?


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