Folha de S. Paulo


Fauna foi a que mais sofreu quando acabou febre da borracha na Amazônia

Não é uma história muito bonita a da convocatória durante a Segunda Guerra Mundial para que milhares de brasileiros pobres, sobretudo nordestinos, se embrenhassem na floresta amazônica para extrair a seiva de seringueiras, os chamados soldados da borracha.

Muitos de seus descendentes se encontram espalhados pela Amazônia, ribeirinhos e agricultores, a maioria ainda pobre. São os filhos, netos e bisnetos dos que sobreviveram, porque muitos seringueiros morreram vítimas do sistema de escravidão por dívida.

O que não se sabia bem, ou pelo menos ignorava este colunista, é que esses soldados também realizaram uma espécie de massacre –o da fauna local. Claro que tinham o melhor dos motivos para isso: sobreviver.

Nos anos 1940, não havia nada parecido com Bolsa Família. Essa gente estavam largada no mato à própria sorte. Com o fim da guerra e o colapso do comércio da borracha, a fome se generalizou. A vários deles restou a alternativa de complementar seus meios de subsistência com a venda de peles e couros de animais amazônicos.

Não se conhecia bem o impacto desse surto de caça, até que pesquisadores brasileiros e americanos tiveram a ideia de consultar os manifestos de carga dos navios que circulavam pelos rios amazônicos. Entre eles estava André Pinassi Antunes, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Um primeiro colapso da borracha já havia ocorrido no início do século 20, quando o produto silvestre brasileiro passou a sofrer a concorrência das plantações na Malásia. Por essa razão Antunes e colaboradores na Universidade do Estado de Oregon (EUA) consideraram o período de 1904 a 1969.

Claro está que os manifestos de carga não contam toda a história de mortandade de animais, porque boa parte dela terá ocorrido de maneira clandestina. Além disso, muitos manifestos se perderam ou foram destruídos.

Os autores do estudo, publicado na semana passada no periódico "Science Advances", fizeram algumas estimativas e desenvolveram uma metodologia para tentar corrigir os números obtidos. Suas conclusões são impressionantes.

Nada menos que 4,4 milhões de jacarés foram mortos naquelas seis décadas, assim como 793 mil capivaras, 386 mil ariranhas e 110 mil peixes-boi.

Os dados revelam mais coisas. Por exemplo, que a fauna associada com o meio fluvial, como todos os animais citados no parágrafo anterior, foi a que mais padeceu. Como seria de esperar, de resto, porque aí vivem os ribeirinhos, eles também dependentes dos rios.

A fauna terrestre foi menos afetada, apesar de pelo menos 5,4 milhões de caititus (porcos selvagens) terem sido mortos, ou 183 mil onças-pintadas. Pode-se afirmar que o impacto foi menor porque o estudo também documentou qual foi a redução das capturas, nos anos 1960, em relação ao pico na quantidade de peles comercializadas.

No caso dos jacarés, uma redução de 92%; no dos caititus, o abate na realidade cresceu, indicando uma maior capacidade de resistência da população da espécie terrestre.

Alguns talvez considerem que o banimento de peles animais da indústria da moda é uma concessão à mentalidade politicamente correta. Mas também há quem o encare como um bom indicador de civilização.


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