Folha de S. Paulo


Pedaladas malignas

A liberação da mal denominada "pílula do câncer" (fosfoetanolamina), por meio de lei sancionada pela presidente Dilma Rousseff (PT) e não pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reproduz em microcosmo a decadência institucional dos últimos 18 anos.

Em 1998, muitos brasileiros, incluindo jornalistas de ciência interessados na então controversa engenharia genética, foram surpreendidos pela notícia de que alimentos transgênicos estavam em fase final de liberação pelo governo. No Planalto, estava o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Em dezembro daquele ano, a CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), autorizou o plantio em escala comercial da soja geneticamente modificada.

Seguiu-se uma longa batalha jurídico-institucional. Adversários da tecnologia combatiam-na com ajuda de juízes e procuradores alarmados, ainda que sem nenhum conhecimento de causa.

Produtores embasbacados com a promessa vazia de milagres agronômicos adotaram o cultivar transgênico, plantado com sementes contrabandeadas da Argentina. Em 2003, o governo Lula legalizou a tal "soja Maradona".

Resumindo a ópera: corpos técnicos do Estado trabalharam pelo sucesso comercial de um produto longe das vistas do público. Mesmo com as resistências surgidas, o governo federal capitulou diante do fato consumado imposto por produtores de soja.

O processo que levou ao vergonhoso licenciamento da "fosfo" seguiu um roteiro semelhante. No que ele tem de diferente daquele de 1998, a mudança foi para pior.

Na berlinda está não a inovação tecnológica de uma multinacional demonizada, mas uma panaceia farmacológica produzida naquilo que, em termos científicos, equivale a um fundo de garagem: um laboratório de ensino de química. Enfeitado, vá lá, com a grife acadêmica "USP".

Um obscuro e messiânico pesquisador elege sua pílula como causa de vida. Por duas décadas, a distribui entre portadores desesperados de câncer. A fosfo cai na boca do povo e da imprensa menos rigorosa.

Quando a universidade acorda e tenta acabar com a festa populista, a Justiça se encarrega de continuá-la. Liminares e mais liminares obrigam da USP a fabricar e fornecer a garrafada em cápsulas.

Logo aparecem os penetras: Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e o governo de Geraldo Alckmin (PSDB), que torram dinheiro público com testes clínicos intempestivos; Congresso Nacional, que só enxerga dividendos na prática de enganar o povo; Dilma Rousseff, que não enjeita nem o mais vergonhoso expediente na tentativa vã de reverter sua impopularidade.

Se hoje se provaram infundados os temores com os transgênicos, menos sólidas ainda são as razões para acreditar na fosfo. Aqueles ao menos passaram por ensaios controlados antes de liberados pela CTNBio; esta nunca passou por teste algum e jamais chegou a ser submetida ao crivo da Anvisa.

Resumindo a ópera, tornada bufa: em vez de endeusar, como fez o Executivo em 1998, agora os três Poderes da República se juntaram para dar pontapés no corpo técnico-científico ao qual se delegou, democraticamente, a missão de zelar pelos medicamentos. E o fizeram por motivos torpes, irresponsabilidade e total ignorância.


Endereço da página: