Folha de S. Paulo


A lua não vem da Ásia

O título poético de um romance surrealista de Campos de Carvalho, "A Lua vem da Ásia" (1956), surgiu à mente –com o sinal trocado– para ilustrar o grave problema da poluição do ar na China e na Índia. Há algo de sombrio em gestação no outro lado do mundo.

A contaminação atmosférica nas grandes cidades asiáticas representa hoje um foco de perturbação social. Estudo da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) estimou que a má qualidade do ar mata 5,5 milhões de pessoas no mundo, por ano, e que metade dessas mortes acontece na China e na Índia.

Fala-se sempre de Pequim e do smog (misto de fumaça e neblina) que paralisa a capital de uma das economias que mais crescem no mundo. Menos pessoas sabem que Nova Déli, na Índia, a ultrapassa nesse campeonato lúgubre, com 98% dos dias acima do limite máximo de material particulado fino (MP 2,5) recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

O dado espantoso emergiu numa das mesas da reunião anual da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência), encerrada segunda-feira (15) em Washington. O portador da má nova foi V. Ramaswamy, da agência de oceanos e atmosfera dos Estados Unidos (Noaa).

O painel tinha notícia pior para dar, contudo, a respeito da Ásia. Se, de um lado, reduzir a poluição urbana se tornou um imperativo para o governo chinês e logo se tornará para o indiano, por outro, esse combate terá o efeito indesejado de potencializar o aquecimento global.

A chave do paradoxo está nos aerossóis, nome genérico dado por pesquisadores às muitas partículas que circulam no ar, dos grãos de sal presentes na maresia à fuligem produzida pela queima de combustíveis fósseis. Eles agridem os pulmões de quem os respira, mas, em alguns casos, também ajudam a reduzir o efeito estufa turbinado pelo CO2 (dióxido de carbono), igualmente emitido na combustão.

A física envolvida na contribuição dos aerossóis para aquecer ou refrigerar a atmosfera tem enorme complexidade e comporta efeitos opostos. Depende das propriedades ópticas das partículas, conforme a substância envolvida, as quais não caberia explicar aqui.

Basta dizer que muitas atuam como se fizessem sombra sobre a superfície terrestre. Tanto é que uma das mais controversas propostas de geoengenharia para contrabalançar o aquecimento global implica lançar partículas de sulfato na atmosfera para causar resfriamento similar ao de erupções vulcânicas.

O alerta foi reforçado, na mesa da AAAS, por William Lau, da Universidade de Maryland (EUA). Ele ressalvou que a atmosfera e os vários tipos de aerossol compõem um sistema interconectado de efeitos reforçadores e atenuadores do aquecimento, mas reiterou que controlar a poluição do ar pode ter efeitos adversos na mudança do clima.

Um desses impactos potenciais ainda mal compreendidos, porque só começou a ser estudado em 2005, se dá na interação entre grandes nuvens de aerossóis e o fenômeno sazonal das monções. Pelo menos 60% da população mundial vive na região sob influência dessas chuvas e regula sua agricultura por elas.

Imagine agora um eventual colapso das monções, ou a alteração drástica de seu padrão. Seria um evento tão tenebroso, para bilhões de pessoas, quanto o clarão lunar deixar de surgir no céu do Oriente.


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