Folha de S. Paulo


O peixe que mudou o mundo

Com o bordão "Vocês querem bacalhau?", Chacrinha, apelido do inimitável apresentador de TV José Abelardo Barbosa de Medeiros, atirava pedaços de peixe salgado sobre o auditório até os anos 1980. Perto dele, Faustão hoje não passa de uma virgem de burca.

A TV brasileira ficou mais comportada, embora as mulheres continuem lá, rebolando como enguias. Mas o mundo mudou mais. Hoje Chacrinha pensaria duas vezes antes de onerar o orçamento de seu programa com o pescado, porque o Gadus morhua (nome científico da espécie) está acabando, e seu preço, lá em cima.

Confesso que tenho fixação com bacalhau. De tempos em tempos escrevo sobre ele, como nesta resposta de 2010 a uma autoridade norueguesa que tentava tranquilizar apreciadores brasileiros da iguaria quanto à vulnerabilidade da espécie.

Desde então, não houve motivos para ficar menos preocupado com os estoques do bacalhau verdadeiro, ou bacalhau-do-atlântico. Ele costuma ser vendido como bacalhau do Porto, ou da Noruega, mas cuidado com os peixes salgados "tipo bacalhau" à venda por aí.

O alerta mais recente se encontra na revista "Science" de 29 de outubro . Andrew Pershing, do Instituto de Pesquisa do Golfo do Maine (EUA), mostra que se acha à beira do colapso o estoque do peixe nas águas a leste da fronteira entre Estados Unidos e Canadá e que a culpa é do aquecimento do oceano.

Essa região do Atlântico Norte já foi uma espécie de paraíso do bacalhau. A pesca do G. morhua foi tão importante para a economia da Nova Inglaterra que uma efígie dele em madeira foi entronizada no plenário da assembleia legislativa de Massachusetts, em Boston, como "Bacalhau Sagrado".

Só que o mar ali está se aquecendo mais rápido que 99% das águas do planeta. Não se sabe bem por quê, a temperatura em alta afeta a reprodução do peixe, um recurso natural cronicamente super-explorado por ali. Com menos filhotes, fracassa a indispensável reposição do estoque.

Cotas de captura do bacalhau já haviam sido reduzidas em 73% no ano de 2013, mas a capacidade de reposição continuou em queda. Estima-se que a taxa de reprodução esteja em apenas 4% do necessário para reconstituir de maneira sustentável a população.

Os noruegueses estão certos, é verdade, ao dizer que a situação do bacalhau no mar de Barents -estoque que exploram em acordo com a Rússia- é muito melhor. Mas há quem se preocupe com o fato de essa região ártica também figurar entre as que mais aceleradamente se aquecem no globo (0,8oC desde os anos 1980, contra 0,66oC no golfo do Maine).

Até aqui, as águas mais quentes na realidade beneficiaram os cardumes de bacalhau (e também os de haddock e arenque), que preferem a água do mar entre 0oC e 11oC. Como o Barents fica na média em torno de 4oC, ainda tem muita gordura para queimar.

Detalhe: projeções do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, na sigla em inglês) prevê que as águas do Ártico podem esquentar até 9oC neste século. Se o Barents atingir 13oC, talvez chegue a hora de dar adeus ao bacalhau.

A vida seria bem mais sem graça sem esse "peixe que mudou o mundo", segundo o título de um livro saboroso sobre a história econômica e cultural do bacalhau lançado em 1997 por Mark Kurlansky e traduzido no Brasil em 2000 .

A maioria de nós talvez já tenha partido antes de essa tragédia em fogo lento se consumar, mas até lá seu preço subirá às alturas. O mundo, ou melhor, o clima em polvorosa, terá então transformado um peixe que já foi alimento de escravos num manjar que só os muito ricos poderão degustar -e não por muito tempo.


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