Folha de S. Paulo


Belo Monte de atraso

A usina hidrelétrica de Belo Monte, na parte paraense do rio Xingu, volta a ser notícia. Agora nas páginas sobre a Operação Lava Jato.

Muito antes disso, já colecionava razões sociais e ambientais para escândalo.

Algumas empreiteiras reunidas no consórcio construtor da barragem são suspeitas de também pagar propinas para abocanhar uma das maiores obras do país. Seu valor está na casa dos R$ 30 bilhões.

Com tanto dinheiro, os empreendedores –e o Estado brasileiro– poderiam ter preparado a região de Altamira (PA) para o inevitável impacto da construção. Apesar de estarem longe disso, como revela dossiê que será divulgado amanhã, devem receber nos próximos dois meses a licença de operação (LO) do Ibama.

A iniciativa do levantamento coube ao Instituto Socioambiental (ISA ), que tem filial em Altamira. O título é direto: "Não há condições para a Licença de Operação". Mas ninguém duvida de que o órgão licenciador do Ministério do Meio Ambiente vai emiti-la.

Sem a LO o reservatório principal, na altura de Altamira, não pode ser enchido. Sem o lago, não há como rodar a primeira turbina da hidrelétrica em novembro, com sete meses de atraso (com prejuízo financeiro para a concessionária da usina).

A lista de compromissos parcial ou inteiramente descumpridos é deprimente. Pior: a radiografia revela a coleção de sintomas que caracteriza a doença nacional do atraso, aqui manifestada no planejamento capenga e no descaso com os ultraconhecidos efeitos perversos desses megaempreendimentos.

A situação não difere essencialmente da diagnosticada na reportagem "A Batalha de Belo Monte" (folha.com/belomonte), publicada pelo site da Folha em dezembro de 2013 (e atualizada um ano depois com "Impasse em Belo Monte": folha.com/belo-monte).

A população de Altamira deu um salto de pelo menos 50% por causa da usina, saindo de 100 mil para 150 mil habitantes. Havia zero de rede coletora de esgotos, antes, e agora há 220 km de tubulações para os dejetos, 170 km adicionais para distribuição de água e uma estação de tratamento de efluentes –mas nenhuma casa conectada ao sistema.

Isso caberia à prefeitura, esquiva-se a concessionária de Belo Monte, Norte Energia S.A., controlada pela União e fundos de pensão de estatais. A empresa gastou R$ 485 milhões em saneamento básico, mas a estação de tratamento ficou parada por falta de esgotos (que são jogados nas águas verdes do Xingu) e de coordenação institucional.

O programa de melhoria da infraestrutura e da qualidade de vida nas aldeias começou com dois anos de atraso. Entre 2010 e 2012, a mortalidade infantil nas terras indígenas da região aumentou 127%, apesar de a Nesa ter despendido R$ 212 milhões com índios.

Boa parte do dinheiro serviu para distribuir 366 barcos, 42 carros e camionetes, 98 geradores elétricos, 578 motores de popa e 2,1 milhões de litros de combustíveis. Até mesada para líderes de aldeias rolou, R$ 30 mil por mês, entre 2010 e 2012 –clientelismo e cooptação, em lugar de direitos e serviços públicos.

Desordem e progresso, enfim. Um passo para a frente e dois para trás –assim caminha o Brasil.


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