Folha de S. Paulo


A verdadeira automedicação

Se uma empresa merece o nome que tem, é a Moderna Therapeutics, de Cambridge (EUA). Assim como a era de mesmo nome destruiu as bases da Idade Média e lançou as do mundo como o conhecemos, a companhia promete tornar obsoletas as técnicas da farmacologia atual e entronizar a medicina do futuro, em que o próprio corpo produzirá os remédios de que precisa.

Parece só uma promessa megalomaníaca, mas a Moderna conseguiu levantar meio bilhão de dólares de investidores para cumpri-la. De duas uma: ou o francês Stéphane Bancel, CEO da firma, tem muita lábia, ou a tecnologia desenvolvida por Kenneth Chien (Universidade Harvard e Instituto Karolinska) lhe pôs muita bala na agulha.

Do ponto de vista biológico, o princípio parece simples: induzir células do organismo a produzir proteínas terapêuticas, em lugar de introduzi-las no corpo do paciente. Chien propôs mobilizar para a tarefa o RNA mensageiro (mRNA), uma classe de moléculas que levam do núcleo da célula para o citoplasma a informação necessária para produzir cada proteína.

Não é tão fácil, claro. Substâncias que não foram fabricadas pelo próprio corpo em geral são aniquiladas pelo sistema imune, que parte do princípio de que sejam ameaças à saúde. Por isso raros biotecnólogos apostaram no conceito, mas Chien conseguiu criar maneiras de fugir aos ataques das células de defesa (um vídeo na página da empresa mostras os RNA se desviando delas, quase uma caricatura).

Em setembro de 2013, ele publicou no periódico científico "Nature Biotechnology" um artigo demonstrando o uso de mRNA sintético, modificado e injetado em camundongos para acelerar a recuperação de tecido cardíaco após infarto. Assim que a tecnologia foi abraçada pela Moderna, no entanto, as publicações científicas cessaram.

Alguma coisa de muito promissor deve ter sido apresentada aos investidores, não há dúvida, pois de outro modo eles não despejariam tanto dinheiro na startup. Além daqueles US$ 500 milhões, a Moderna obteve outros US$ 100 milhões em acordo com a gigante farmacêutica Merck para explorar a aplicação do princípio em vacinas e no tratamento de doenças virais.

A ideia é injetar na corrente sanguínea uma carga desses mRNAs alterados para que sejam absorvidos nas células dos órgãos de interesse. Chegando ali, eles passam a ser lidos pelos ribossomos, as fábricas celulares de proteínas, e dão origem a várias cópias da molécula curadora – por exemplo, anticorpos.

Alguns dos remédios mais bem-sucedidos da farmacologia pós-genômica, como ressaltou Luke Timmerman na "Forbes", são justamente proteínas complexas como etanercepte (Enbrel) ou rituximab (Mabthera). Fabricá-las no próprio corpo, e não em grandes biorreatores com microrganismos geneticamente modificados com esse fim, seria um avanço considerável.

A Moderna ainda terá de provar duas coisas, porém. Primeiro, que consegue fazer sua mágica com qualquer proteína, ou pelo menos com várias, de preferência com interesse médico e comercial. Depois, aplicá-la em estudos clínicos para demonstrar que seus mRNAs não são tóxicos e são eficazes em muitos doentes.

Para isso, no entanto, terá de renunciar à prática medieval do segredo e publicar seus resultados em detalhe.


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