Folha de S. Paulo


A Guerra Fria do DNA

A ciência já sabe o que seus genes fizeram no verão passado. Melhor dizendo, o que eles não fizeram: muita inflamação.

Pesquisadores da Universidade de Cambridge confirmaram duas crenças comuns. Primeiro, que o verão é a estação da saúde. Segundo, o oposto: que no inverno as pessoas ficam mais propensas a cair doentes.

Já se sabia que a temporada de dias frios e curtos tem mais incidência e mortes por moléstias como as cardiovasculares. Só não se sabia bem por quê.

O que o grupo liderado por John Todd identificou foi uma forte sazonalidade na ativação de alguns grupos de genes entre os mais de 20 mil presentes nas células humanas. Cerca de um quarto (5.136 de 22.822 sequências de DNA investigadas) parece ter clara preferência por uma ou outra estação.

Seu material de pesquisa abrangeu amostras de 16 mil pessoas em países como Reino Unido, Estados Unidos, Islândia, Austrália e Gâmbia. O interesse do grupo recaía sobre enfermidades com componente inflamatório, como males cardíacos, artrite reumatoide e diabetes (neste caso, autoimune, ou reação inflamatória contra tecidos saudáveis).

A inflamação é uma ofensiva do sistema de defesa do corpo contra o que detecta como agressões ou inimigos. Podem ser células danificadas que é preciso remover (de ferimento, por exemplo), substâncias irritantes ou microrganismos patogênicos (causadores de doenças).

O contra-ataque começa com a dilatação de vasos sanguíneos, o que faz a região sob ameaça inchar. Pelas vias alargadas avança a infantaria do sistema imune, os glóbulos brancos, cuja primeira missão é destruir bactérias invasoras.

Essa reação, como tudo no organismo, é mediada por genes. Quando certas substâncias sinalizadoras de dano ou invasão começam a circular no sangue, destravam a expressão (ativação) de trechos de DNA que guardam instruções para as células produzirem mais munição e novas células para a tropa.

Todd e seus parceiros provaram que, a depender da época do ano em que haviam sido colhidas as 16 mil amostras, o perfil de expressão dos genes variava muito. Um deles (ARNTL), envolvido na contenção de inflamações e mais ativo no verão, quase que desaparece de cena no inverno.

"No futuro será essencial continuar a investigar quais as potenciais implicações médicas dessa variação sazonal", diz um dos coautores do estudo, o português Ricardo Ferreira, "e se poderão ser levadas em conta na escolha para o tratamento de certas doenças."

Os efeitos foram observados em populações etnicamente diversas dos dois hemisférios, como nos EUA e na Austrália, mas com o sinal trocado. Bem o que seria de esperar diante do fato de o inverno numa coincidir com o verão na outra.

Em Gâmbia observou-se variação similar. Desencadeada não pela duração do dia, como se acredita ser o gatilho em latitudes mais elevadas, e sim pelas chuvas. É nessa época que a malária ataca mais, com a proliferação de mosquitos.

Em resumo, na estação fria do ano – ou em qualquer outra com chances maiores de infecção –, rebaixam-se os limiares para o corpo desencadear uma reação inflamatória. Os quartéis ficam o tempo todo de prontidão, como dos dois lados da Cortina de Ferro na Guerra Fria.


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