Folha de S. Paulo


Páscoa animal

Nada é mais animal do que a ideia de ressurreição. Mesmo sendo ateu, reverencio essa homenagem que a espiritualidade cristã presta à carne e aos ossos. Nada mais sobrenatural do que reverter os efeitos definitivos da morte sobre nós e nossos parentes no mundo natural. Deve vir daí tanto fascínio cinematográfico com os zumbis.

Nos olhos de um bicho, mesmo em fotografias, o que reconheço é a percepção (já ia dizendo "consciência") da precariedade da vida. O medo de morrer nos aproxima. Mas eles não se refugiam na noção de uma outra vida -defendem-se como podem, com garras e dentes.

Talvez seja essa a fonte de nosso apego aos mascotes. A vida urbana se impõe à humanidade, e as cidades se tornam o avesso do ambiente natural. Resistimos, porém.

Insistimos em abrigar nas nossas cavernas de cimento e metal essas testemunhas mudas de uma vida anterior. Um tempo em que viver era muito perigoso e em que, para morrer, bastava estar vivo.

Nada é menos prático do que manter cachorros em apartamentos, parece claro. Só que eles estão por toda parte.

Com a verticalização imobiliária e o adensamento da população canina, as calçadas se convertem em mictórios ao ar livre (são raros, hoje, os donos que não recolhem o produto de outra atividade fisiológica, ao menos em bairros de classe média, de "elite branca", de panelaços).

Alguns se revoltam com a domesticação, ocasionalmente. Latem ladram, ganem. Podem até morder. Mantém um vestígio de dignidade, aferrando-se à própria animalidade. Nós, humanos, preferimos vivê-la de maneira vicária, na pele de feras que tratamos como filhos.

A doença infantil dessa terceirização são as manifestações de sentimentalismo "pet" que pululam nas redes sociais. Vídeos fofos de bichinhos se tornaram mais abundantes, mas não menos repulsivos, que poças de urina de cachorro nas ruas.

Uma ave, talvez uma calopsita, bica suavemente a cara de um gato, como se catasse pulgas. O bichano se contorce de prazer na imagem de vídeo com legendas num alfabeto que não dá pra decifrar.

Um filhote de tatu-bola, aquele ameaçado de extinção que virou o Fuleco da Copa, rola pelo carpete com um bicho de pelúcia. Gatos e cachorros confraternizam. Um tentilhão usa o bico para dar nós num fiapo de grama e tecer o ninho.

Quantas das pessoas que postam essas coisas terão examinado com as próprias mãos um ninho de japu? Acariciado a cabeça de um cão moribundo? Ouvido, em terror, os esturros de uma onça escondida no mato?

Tenho mais simpatia pela visão sem firulas, "rubra nas presas e nas garras", que os índios brasileiros têm do mundo natural. Enxergam-no sob o ângulo onipresente da predação, relação primordial entre todos os seres.

Como ensina o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro com sua teoria do perspectivismo ameríndio, trata-se de uma maneira de socializar toda a natureza. O homem é a onça do peixe, por assim dizer. Estamos todos na mesma canoa.

Não é verdade, claro, ao menos no sentido cartesiano de verdade. A densidade crítica alcançada pela massa humana no planeta destrói habitats e leva à morte mais espécies que um asteroide em colisão com a Terra.

Acredite quem quiser na duvidosa ressurreição de Cristo. Mas tenham todos a certeza de que animais extintos jamais voltarão à vida.


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