Folha de S. Paulo


Superbebês para todos

Chegamos lá. A humanidade está prestes a modificar para sempre o patrimônio genético que a trouxe até aqui. O passo enorme pode até demorar, se vingar uma proposta de moratória, mas será dado. Mais dia, menos dia.

A tecnologia já existe e se chama CRISPR. Permite alterar os genes de células de maneira precisa, ou seja, cortar, colar, inserir e deletar letras ou vocábulos inteiros do código genético de organismos vivos.

Nada impede que isso seja feito com óvulos, espermatozoides ou embriões. Estas alterações da chamada linha germinativa, se bem sucedidas, seriam então transmitidas pelo indivíduo geneticamente modificado para seus descendentes.

Não, contudo, se depender de Edward Lanphier. Ele e quatro colegas lançaram na quinta-feira (12/3), no periódico científico "Nature", um manifesto pelo adiamento dessas pesquisas e por mais discussão sobre implicações éticas e legais.

Os temores são de que geneticistas não se limitem a fazer modificações de DNA só para curar ou evitar doenças genéticas como fibrose cística ou coreia de Huntington. Estaria aberto o caminho para a chamada eugenia positiva, vale dizer, para a escolha de características como cor dos olhos, inteligência, estatura etc.

O fato de isso não ser hoje exequível não quer dizer grande coisa. Há um século não se sabia como fazer bebês de proveta, e há meio século ninguém tinha ferramentas para manipular DNA. Mas chegamos lá. Os superbebês, "designer babies", são uma possibilidade real.

Lanphier e cia. receiam que a previsível reação negativa da opinião pública acabe por banir alterações genéticas também do arsenal biotecnológico já mobilizado, ainda em escala experimental, para atacar moléstias em indivíduos adultos. Hemofilia, anemia falciforme e alguns cânceres estão na mira.

Lanphier preside a empresa californiana Sangamo Biosciences, que desenvolve uma técnica para editar o DNA de células do sangue de adultos com Aids e municiá-las no combate ao HIV. Seu objetivo, portanto, é também comercial: manter ao largo de regulamentações restritivas o próprio campo de pesquisa.

Ele e seus colegas não estão sozinhos. Em torno de 40 países baniram ou ergueram barreiras contra a modificação da linhagem germinativa. Na Europa, 15 de 22 países a proíbem. Nos EUA não há lei contra, mas os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) não financiam estudos nessa seara.

A maior parte dessas informações está na completa reportagem de Antonio Regalado na edição de março da "MIT Technology Review". A qualidade de seu texto jornalístico fica atestada com o fato de figurar como primeira referência de Lanphier e companhia no comentário para a "Nature".

A sugestão de moratória tem um precedente célebre, a Conferência de Asilomar, em fevereiro de 1975. Menos de dois anos antes, a descoberta de técnicas para misturar genes de bactérias e vírus semeara dúvidas sobre a segurança biológica dos experimentos. Temia-se que surgissem supergermes e que eles escapassem para o ambiente.

Sob a liderança de Maxine Singer e Paul Berg (Nobel de Química em 1980), as pesquisas com DNA recombinante foram suspensas até que se chegasse a um consenso sobre medidas de precaução nos laboratórios de engenharia genética. Surgia o alicerce de boas práticas que sustenta a pesquisa até hoje.

Supondo que as questões da segurança e da eficiência (só 20% a 40% das células submetidas à CRISPR terminam de fato modificadas) sejam resolvidas, resta a da equidade. Quem vai poder pagar para escolher os genes dos filhos?

Se a nova raça de crianças sair um dia do limbo ético e técnico em que se encontra, que seja para todas as famílias. No Brasil, teria de ser oferecida pelo SUS. Superbebês para todos, senão caminharíamos para um abismo social e uma polarização muito pior que a burra pinimba entre petistas e tucanos.


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