Folha de S. Paulo


Quando a natureza nos ensina a ser mais humanos

Reuters
Área de Houston alagada após a passagem do furacão Harvey
Área de Houston alagada após a passagem do furacão Harvey

Todo mundo já teve alguma experiência assustadora com o clima: uma tempestade devastadora, rios em cheia, desabamentos, ressacas violentas –como a que assolou a orla do Rio em outubro passado...No Brasil, até que temos sorte, já que não precisamos nos preocupar com terremotos ou vulcões.

Mesmo assim, por experiência própria ou por notícias de outros países, cansamos de ver que, quando a natureza resolve demonstrar seus poderes, nossos recursos e ingenuidade, mesmo que úteis, raramente são suficientes. Claro, estamos longe da situação precária de nossos ancestrais das cavernas, estes sim completamente à mercê dos elementos. Mas, finda a tempestade, o furacão, o maremoto, o terremoto ou a erupção vulcânica, nos sentimos como formigas pisoteadas por uma criança de três anos.

A ordem natural obedece a uma hierarquia rígida, e quem acha que estamos além dela comete um grave erro.

Seres humanos são produto de circunstâncias específicas, que combinam a aleatoriedade das mutações genéticas com o ambiente em que nossos antepassados evoluíram. Após milhões de anos, uma série de transformações em nossos primos hominídeos acabaram por gerar a nossa espécie, não muito mais do que cerca de 200 mil anos atrás. Praticamente nada quando comparados aos 4,5 bilhões de anos da Terra.

Em termos da história planetária, acabamos de chegar. A operação dos nossos sentidos (por exemplo, nossos olhos, que enxergam do vermelho ao violeta, mas não radiação infravermelha ou ondas de rádio), o modo como nos movemos, a funcionalidade dos nossos corpos, tudo isso é otimizado para este planeta, dentro de condições que, apesar das flutuações de temperatura, não mudaram tanto nos últimos 30 mil anos. Casacos e aparelhos de ar-condicionado ajudam, mas têm seus limites.

Se saímos do nosso ambiente normal, logo nos deparamos com sérias limitações. Basta subir uma montanha de mais de 2.500 metros para sentir como fica difícil respirar. No topo do Everest, nossa funcionalidade metabólica cai para 30%. Ondas de calor ou de frio afetam nosso comportamento e podem ser fatais.

Não temos pelos espessos ou grandes reservas de gordura, chifres, garras e dentes afiados, ferrões venenosos ou um exoesqueleto para nos proteger. Nossas vantagens evolucionárias são o polegar opositor, glândulas que nos permitem suar (e, portanto, correr por muito tempo), e um córtex frontal de tamanho desproporcional ao volume do nosso cérebro. Graças à essas vantagens, conseguimos transformar o planeta, ou, ao menos, parte de sua superfície e atmosfera. Infelizmente, nossos pequenos sucessos em adaptabilidade e controle da natureza nos cegaram, criando a ilusão de que podemos dominar impunemente o planeta que habitamos.

No entanto, basta ocorrer um desastre natural para que voltemos às nossas condições primordiais, sem abrigo, eletricidade, comida ou água potável –os confortos da vida moderna que achamos que estão sempre aqui para nós, acessíveis. E agora? Nessas situações, doenças se espalham com facilidade e temos poucas estratégias para nos proteger ou medicar.

O que podemos e devemos fazer é criar um espírito de cooperação mútua para nos reagrupar e reconstruir, usando os recursos disponíveis para restabelecer um senso de comunidade.

Como sabemos bem, existirão sempre aqueles que usarão o caos da situação para se beneficiar individualmente, sem qualquer preocupação com os que estão ao seu lado. (Infelizmente, essas pessoas existem mesmo sem crises naturais.) Mas é também nesse tipo de situação, quando atingimos o fundo do poço, que testemunhamos o que temos de melhor ressurgir, indivíduos que se transformam em heróis, muitas vezes arriscando suas vidas por pessoas que nem conhecem. É nessa hora que a natureza nos dá uma lição de vida, e somos obrigados a vivenciar um resgate da nossa humanidade, quando a sobrevivência do grupo é mais importante do que a do indivíduo, e o espírito social triunfa sobre a ganância pessoal.

Nas próximas décadas, à medida que o aquecimento global for mudando o planeta, iremos vivenciar eventos climáticos com severidade cada vez maior, no Brasil e no resto do mundo. O furacão que essa semana transformou Houston, a quarta maior cidade americana, num grande pântano, é um exemplo disso. Essas crises irão desafiar nossa capacidade de adaptação às condições ambientais extremas.

Se iremos ou não sobrepujá-las dependerá, em grande parte, da habilidade que temos de preservar nosso senso de comunidade e de resgatar nossas melhores qualidades, passando por cima das tantas diferenças culturais que nos separam. Os testes serão difíceis e nosso equilíbrio social já é precário. Sendo otimista, acredito que quando seguidas crises desafiarem nossa sobrevivência, veremos mais heróis do que oportunistas definirem nosso futuro.


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