Folha de S. Paulo


Explorando mundos invisíveis

Cern, laboratório europeu de física de partículas
Cern, laboratório europeu de física de partículas

"A Natureza ama se esconder".

Assim disse o filósofo grego Heráclito, que viveu na cidade de Éfeso mais de 2.500 anos atrás, expressando o senso de mistério que sentimos quando pensamos sobre o mundo e seus mecanismos invisíveis.

Quais são esses pactos secretos que fazem do mundo o mundo, das menores partículas de matéria aos neurônios em seu cérebro e o universo e sua expansão inexorável?

No seu sentido mais nobre, a ciência explora esses mistérios e tantos outros, iluminando os caminhos ocultos da Natureza, abrindo brechas que nos permitam ver um pouco mais longe. Se a Natureza ama se esconder, nós adoramos achar, a curiosidade sendo, talvez, nossa característica mais marcante.

Estou passando este mês no Cern, o laboratório europeu de física de partículas, onde algumas das mentes mais poderosas do planeta tentam entender do que o mundo é feito.

O seu instrumento de exploração é o Grande Colisor de Hádrons (LHC), a maior máquina já construída, localizada 100 metros abaixo da superfície num túnel circular de 27 km, onde prótons colidem com prótons a velocidades próximas da velocidade da luz. (Para maiores detalhes, veja a Horizontes da semana passada.)

Após a descoberta espetacular do bóson de Higgs em 2012, uma partícula prevista por modelos teóricos na década de 1960, a energia de colisão do LHC foi aumentada em busca de outras possibilidades. A expectativa é enorme, mesmo se, até agora, nada de muito interessante tenha aparecido. O que será que a Natureza está escondendo?

Uma possibilidade vem do próprio Higgs. Talvez seja composto de partículas ainda menores? Esse foi o caso em vários exemplos, começando com os átomos, que, achávamos, eram indivisíveis e, hoje, sabemos que são todos compostos por três partículas: prótons, nêutrons e elétrons. Descobrimos, também, que os prótons e nêutrons –e centenas de outras partículas organizadas em grupos chamados de bárions e mésons– são formados por combinações diferentes de apenas seis quarks. Colisões recentes estão sendo analisadas para ver se o Higgs esconde algo.

Sabemos que a versão atual da física de partículas, o Modelo Padrão, está incompleto. Muitas questões permanecem em aberto, escondendo, achamos, novas descobertas. Se o Higgs é feito de partículas menores, teremos que revisar nossos modelos, o que seria ótimo. Assim funciona a física e as ciências em geral: partimos da nossa ignorância atual em busca de novo conhecimento.

Mas um Higgs feito de outras partículas é apenas uma das muitas possibilidades. Outra é a "matéria escura". Em torno de 26% do universo é composto de algum tipo de partícula (ou partículas) que permanece desconhecida. (A matéria comum compõe apenas 5% do universo.) Sabemos que está lá, porque a matéria que podemos ver –coisas feitas de átomos– é atraída pela atração gravitacional da matéria escura. Vemos galáxias que giram mais rapidamente do que deveriam; quando em grupos, movem com velocidades maiores do que se houvesse apenas matéria comum. E encontramos evidência de matéria escura num dos efeitos mais incríveis da teoria da relatividade geral de Einstein, quando a matéria encurva raios de luz. Observando galáxias e outros objetos distantes, vemos sua luz distorcida, como se passasse por uma lente. Esse efeito, conhecido como lente gravitacional, é um dos mais dramáticos da matéria escura.

Acreditamos que a matéria escura é feita de partículas que interagem com a matéria comum apenas (ou principalmente) através da gravidade. Se as colisões entre os prótons no LHC tiverem energia suficiente, poderão, ao menos em teoria, criar não apenas o bóson de Higgs e outras partículas como, também, partículas de matéria escura. A teoria que prevê sua existência é chamada de supersimetria, e muitos físicos esperam ansiosamente por seus sinais. Infelizmente, até agora nada e alguns duvidam que essas teorias estejam corretas. Mas a busca continua.

A possibilidade mais exótica é, sem dúvida, a de dimensões extra do espaço. Conhecemos as três nas quais nos movemos: norte-sul, leste-oeste e verticalmente. Mas algumas teorias preveem a existência de outras dimensões, invisíveis devido ao seu tamanho. Da mesma forma que uma mangueira, quando vista de longe, parece uma linha (e, portanto, tendo uma dimensão), essas dimensões extra podem ser tão pequenas que passam desapercebidas. Estimativas de seu tamanho variam, de indetectáveis à detectáveis no LHC. A probabilidade de uma descoberta é pequena, mas seu impacto seria tão profundo que a busca continua.

Até mesmo mini-buracos-negros podem ser criados no LHC, algo que muitos temem (desnecessariamente ) poderia causar o fim do mundo! Felizmente, esses buracos negros se desintegrariam em radiação em frações de segundo, sem causar qualquer problema. Sua descoberta seria prova incontroversa da interconexão entre todas as coisas na Natureza, da energia à matéria à gravidade ao próprio espaço.

Na Idade Média, as pessoas faziam peregrinações a catedrais enormes, em busca de respostas às suas questões existenciais que, acreditavam, escondiam-se em mundos invisíveis. Quando vemos o que ocorre no Cern, com seus milhares de cientistas, engenheiros e estudantes –todos buscando desvendar os segredos da Natureza– é difícil não pensar numa catedral moderna, a ponte entre a razão e o mistério, onde fazemos nossas peregrinações em tempos conturbados.


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