Folha de S. Paulo


A misteriosa receita cósmica

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Simulação mostra possível distribuição (em púrpura) da energia escura no universo
Simulação mostra possível distribuição (em púrpura) da energia escura no universo

Hoje, fechando essa trilogia inicial da Horizontes, exploramos a composição material do universo. Começamos discutindo a questão da expansão cósmica e, de lá, mergulhamos na questão da origem de todas as coisas. Sabendo que o universo teve sua origem 13.8 bilhões de anos atrás e vem expandindo e esfriando desde então, resta investigar do que é feito, a receita cósmica.

Para simplificar, divido a receita cósmica nos seus três ingredientes principais: a matéria "normal", da qual somos feitos, a matéria escura, e a energia escura.

MATÉRIA 'NORMAL'

Na escola, aprendemos que tudo o que existe é feito de 92 átomos, do hidrogênio ao urânio. Aprendemos, também, que cada um desses átomos é composto por três partículas: prótons e nêutrons no núcleo, e elétrons circulando à sua volta. A natureza do elemento químico depende do seu número de prótons: o hidrogênio tem um e o urânio 92.

Cientistas descobriram que prótons e nêutrons são compostos por partículas ainda mais elementares, os quarks "up" (u) e "down" (d). Um próton é um composto u-u-d, e um nêutron u-d-d. Portanto, podemos afirmar que tudo o que existe no mundo, das pedras a sapos e nuvens, de planetas a estrelas, é feito de dois quarks e elétrons em arranjos e números diferentes, uma síntese incrível.

A matéria, em todos os seus arranjos, é resultado do balanço entre forças atrativas e repulsivas. A gravidade rege a dinâmica cósmica, enquanto o eletromagnetismo, as atrações e repulsões entre partículas com carga elétrica. No núcleo atômico, existem as forças nucleares forte e fraca. Essas quatro forças são descritas por partículas. Para visualizar isso, imagine dois patinadores, que atiram bolas um no outro quando se aproximam. Se contarmos todas as partículas que conhecemos (a maioria só aparece em experimentos de alta energia em laboratórios) chegamos à 12 partículas de matéria e mais o bóson de Higgs, a partícula que dá massa a todas as outras (fora o fóton, a partícula da luz, que transmite o eletromagnetismo); e mais as partículas das forças.

Surpreendentemente, essa matéria "normal" é apenas parte da história, 5% dela. O resto do Universo é composto de coisas que ainda desconhecemos. Sabemos que existem e sua quantidade, mas não o que são. É aqui que o mistério começa.

MATÉRIA ESCURA

Na década de 1930, o astrônomo suíço-americano Fritz Zwicky descobriu que galáxias em grupos têm velocidades muito mais altas do que deveriam, se reagissem apenas à sua atração gravitacional. Zwicky sugeriu que uma espécie de matéria invisível envolvia as galáxias feito um véu. Sua atração gravitacional era sentida, mas não podia ser visualizada pois não emitia luz. Daí o nome, matéria escura. Sabemos que não é feita de quarks ou elétrons, e neutrinos provavelmente também não. O estranho é que medidas atuais indicam que a matéria escura contribui 26% do total que enche o Cosmo, em torno de cinco vezes mais do que a matéria normal!

Não faltam candidatos, mas até agora nenhum foi confirmado, após décadas de uma caçada intensa. Alguns cientistas vêm sugerindo que a matéria escura não existe, que nossa teoria da gravidade precisa ser modificada. De qualquer forma, a resolução do mistério da matéria escura abriria uma nova janela para o Universo.

ENERGIA ESCURA

ESA/Planck Collaboration
A composição do universo de acordo com dados do satélite Planck da Agência Espacial Europeia.
A composição do universo de acordo com dados do satélite Planck da Agência Espacial Europeia.

Fazendo as contas, faltam 69% dos materiais preenchendo o Cosmo. Esse é o maior dos mistérios, descoberto acidentalmente em 1998, que a expansão cósmica está acelerando. A culpada, aparentemente, é a "energia escura", modelada como uma espécie de fluido que tem o efeito de forçar a expansão do espaço, preenchendo todo o seu volume; um fluido omnipresente! Não sabemos o que é, mas temos alguns candidatos. Sabemos que só atua em distâncias gigantescas, de dezenas de milhões de anos-luz. Por isso nós não expandimos, ou o sistema solar ou a galáxia.

Mesmo com todos os sucessos da cosmologia e astronomia moderna, temos muito ainda para aprender. E é assim que deve ser! Afinal, a ciência caminha às margens da ignorância, gerando tanto novo conhecimento quanto novas questões. Seguimos com humildade perante o desconhecido, inspirados pela nossa capacidade de aprender e se maravilhar com o mundo.


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