Folha de S. Paulo


Do mito à ciência: será que podemos entender a origem de todas as coisas?

NASA/ESA/S.Beckwith (STScI)/The Hubble Heritage Team (STScI/AURA)
Galáxia espiral M51 (NGC 5194) e sua companheira
Galáxia espiral M51 (NGC 5194) e sua companheira

Essa é a "grande questão" que nos acompanha desde o início da história, parte da tradição de praticamente todas as culturas que conhecemos. Do xamã ao cientista contemporâneo, a questão da origem de todas as coisas exerce um fascínio inescapável.

No caso dos mitos de criação, narrativas religiosas da origem do mundo e da vida, na maioria das vezes um poder absoluto além do tempo e do espaço, encarnado em alguma divindade, cria o mundo e suas criaturas num momento do passado. Os deuses, por definição, não respeitam as leis da natureza que regem a matéria, seja ela inanimada ou viva.

Em meu livro "A Dança do Universo ", apresento uma classificação detalhada dos mitos de criação. Basicamente, mitos tanto descrevem a origem do mundo num momento do passado (como na bíblia), ou um universo eterno, seja ele sem origem ou criado e destruído ciclicamente.

Já os filósofos do Ocidente entenderam que a mente humana se depara com um obstáculo lógico intransponível quando se pergunta, como o fez Gottfried Leibniz no século 17, "por que existe algo em vez de nada?".

Bem antes, na Grécia Antiga, Aristóteles propôs a existência do Movedor Imóvel, uma divindade capaz de pôr o Cosmo em movimento sem ter que ser movida, dando uma espécie de pontapé inicial da Criação. Daí por diante, processos de causa e efeito fazem o resto. O problema, portanto, se reduz à questão da Primeira Causa, a causa que deu início a todas as outras. Esse é o desafio da cosmologia moderna, sugerir uma narrativa científica da origem de tudo que evita a questão da Primeira Causa e, claro, uma intervenção divina.

Nos últimos 100 anos, aprendemos muito sobre o Universo, graças aos esforços de milhares de cientistas. Sabemos que vivemos numa galáxia, a Via Láctea, que se formou em torno de 10 bilhões de anos atrás, num Universo que surgiu 3,8 bilhões de anos antes disso. Sabemos que o Universo vem expandindo desde sua origem, o que significa que galáxias estão se distanciando mutuamente.

Portanto, se passamos o filme da história cósmica ao contrário, chegamos ao ponto inicial, a "singularidade", quando a matéria estava comprimida num volume diminuto, atingindo densidade e temperatura altíssimas.

Podemos reconstruir esse passado com segurança até centésimos de segundo após o "bang", quando os primeiros núcleos atômicos foram formados. Usando o acelerador de partículas no laboratório Cern, em Genebra, na Suíça, podemos recuar ainda mais, até um trilhonésimo de segundo após o bang. Faltam alguns detalhes, claro, mas o quadro geral é entendido.

Indo mais para trás no tempo, em direção à origem, as coisas começam a complicar. Na singularidade, nos deparamos com a Primeira Causa.

Temos vários modelos que visam explicar o que ocorreu no início. Mas como não sabemos que tipo de partículas de matéria existiam além das que estudamos no Cern, são modelos ainda especulativos. Ao contrário do que escrevem vários cientistas, não temos a menor ideia do que ocorreu na singularidade.

A Dança do Universo (Edição de Bolso)
Marcelo Gleiser
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Mesmo que algum modelo funcionasse, seria apenas uma descrição parcial. Afinal, todo modelo científico usa leis e princípios na sua formulação. Esses princípios são o ponto de partida da ciência, sua Primeira Causa. Para ir além, seria necessária uma metaciência capaz de explicar suas próprias origens. Dessa, nada sabemos.

Nos resta continuar a expandir o conhecimento, com humildade e perseverança. Como escreveu Tom Stoppard, "o que dá sentido à vida é o querer saber".


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