Folha de S. Paulo


O futebol dos deuses

O famoso físico americano Richard Feynman fez a seguinte comparação entre jogos e as leis da natureza (adaptada ao futebol):

"Imagine que o mundo seja como uma gigantesca partida de futebol sendo disputada pelos deuses, e nós fazemos parte da audiência. Não sabemos quais são as regras do jogo; podemos apenas observar o seu desenrolar. A princípio, se observarmos por tempo suficiente, iremos descobrir algumas das regras. As regras do jogo são o que chamamos de física fundamental."

Segundo essa analogia, as leis da natureza são como regras de um jogo, e o papel do físico é descobri-las. Fazemos isso através da observação meticulosa daquilo que ocorre no mundo, usando nossos instrumentos e munidos de nossa intuição e de nossa capacidade dedutiva.

Sempre gostei muito dessa analogia de Feynman. Ela demonstra vários aspectos do pensamento científico, o mais óbvio sendo nossa cegueira perene: vemos pouco do que realmente ocorre, e o que vemos e podemos deduzir é necessariamente apenas parte da história. Nossa visão de mundo é incompleta.

Para vermos isso, basta pensarmos historicamente. Para Cabral, em 1500, o Cosmo era muito diferente do cosmo de Newton, em 1686, ou do Cosmo de hoje. Em 1500, o universo era finito, fechado numa esfera, com a Terra imóvel no centro da Criação. Para Newton, o cosmo tornou-se infinito, seus mecanismos descritos por leis quantitativas, como se a Natureza soubesse matemática. Decifrar suas leis era desvendar a mente de Deus, o Grande Geômetra.

Hoje, não sabemos se o Universo é infinito ou não, mas sabemos que está em expansão, com as galáxias se afastando umas das outras com velocidade crescente. Com isso, cresce também a vastidão vazia do Cosmo.

As leis da natureza são o modo como organizamos as regularidades e os comportamentos que podemos observar. Algumas são fáceis de identificar, mesmo a olho nu, como as fases da Lua, as marés ou as estações do ano (todas explicadas pela física de Newton). Outra leis, como o espectro do átomo de hidrogênio ou a precessão da órbita de Mercúrio, são menos fáceis.

Se continuarmos com a analogia de Feynman, o futebol dos deuses é bem mais sutil do que aquilo que vemos nos campos: existem aspectos visíveis e outros invisíveis. Para vermos esse lado invisível da realidade, precisamos ampliar nossa visão de mundo com instrumentos especiais: telescópios, microscópios, espectrógrafos de massa, aceleradores de partículas, sensores e detectores de vários tipos etc.

Novos instrumentos têm o potencial de revelar uma lei nova. Muitas vezes, essa lei vem como uma grande surpresa, algo que não podíamos ter antecipado. Em alguns casos, a revelação é revolucionária e nos força a rever algum aspecto essencial da realidade: a estrutura do espaço e do tempo, as transformações entre energia e matéria, as propriedades de uma estrela, a origem do Universo.

Sabemos apenas parte do que ocorre, vemos apenas parte do que existe. A ciência é uma construção, um trabalho sempre em andamento. Quanto mais aprendemos do futebol dos deuses, mais aprendemos que temos muito ainda a aprender. É possível até que as regras formem um labirinto, sem começo nem fim.


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