Folha de S. Paulo


Série sobre Elizabeth 2ª, 'The Crown' vai além das fofocas da corte britânica

Luli Penna/Folhapress

A segunda temporada de "The Crown" começou na sexta passada, pela Netflix. Mas vamos com calma.

Ainda prefiro ver as coisas em DVD, e já está disponível o box da primeira temporada, contando os primeiros anos do reinado de Elizabeth 2ª. Assisti aos dez episódios em poucos dias, gostando cada vez mais.

Quem acha tediosos os noivados, casamentos e enterros da família real britânica tem muito mais do que isso para aproveitar.

Acompanhamos, por exemplo, os últimos anos da carreira de Winston Churchill (1874-1965), vivido inesquecivelmente por John Lithgow. Fragilizado, tonitruante, amedrontador e fulgurante nas tiradas de espírito, ele é uma festa –e um drama– cada vez que aparece em cena.

"The Crown" apresenta seguidas e surpreendentes lições do que é uma grande liderança política.

Todos conhecem, sem dúvida, o papel único de Churchill –e de seu domínio retórico– nos primeiros momentos da 2ª Guerra Mundial, quando sustentou a resistência da Inglaterra ao que parecia o avanço irreprimível de Hitler sobre a Europa.

Mas em 1952, por exemplo, não havia muito mais o que ele pudesse demonstrar em termos de criatividade política. Um dos episódios da série narra a grave crise de saúde pública que se verificou em Londres, com um pesadíssimo "fog" que durou cinco dias e do qual resultaram –conforme se soube depois– quatro mil mortes.

O frio de dezembro levou a um excesso de consumo de carvão, a fumaça não se dispersava devido a condições climáticas, e as pessoas não morriam apenas de crise respiratória, mas também de atropelamento: não se enxergava nada.

Como tantos conservadores hoje em dia, Churchill não levava a sério os problemas ambientais, e considerava que a neblina ia simplesmente se dissipar cedo ou tarde. Contra fenômenos "naturais", nada haveria a fazer.

Acreditava na geração de energia pela queima de carvão (e, diga-se a seu favor, o frio poderia matar muita gente também), e resiste, com teimosia desesperadora, às pressões da opinião pública, da oposição e de seu próprio gabinete em favor de leis antipoluição.

Não conto o episódio, mas quem assistir verá de que maneira um político pode passar por uma completa reviravolta nos acontecimentos e nas próprias atitudes sem parecer que recuou ou está sendo derrotado.

É sem dúvida uma arte fazer com que tudo pareça, em retrospecto, um ato calculado, lógico e nascido da própria vontade. O político de gênio segue as correntes do momento como se as conduzisse –e também não tem medo de fixar suas âncoras em algum ponto, quando isso lhe parece certo.

Qualidades opostas são as requeridas da rainha Elizabeth –que tem de aprender, com grandes sacrifícios pessoais, a não fazer nada e a deixar de ser quem é. O domínio do Parlamento sobre a casa real é maior do que se poderia pensar: até os "hobbies" do duque de Edimburgo (que adorava acrobacias aéreas) dependem de aprovação da maioria legislativa.

Com isso, a arte das atrizes e dos atores desse seriado se torna –não estou exagerando– sublime.

Claire Foy, como Elizabeth 2ª, Eileen Atkins, como sua mãe, ou Alex Jennings, no papel de Duque de Windsor, enfrentam o desafio de representar personagens que não podem, praticamente nunca, expressar suas verdadeiras emoções. Uma leve dilatação do olhar, um microssegundo de hesitação, o esboço da sombra de um sorriso têm de dizer tudo ""e, em geral, suas falas sugerem ainda menos.

Até personagens secundários, como Graham Sutherland (Stephen Dillane) –o pintor moderno que, para azar de ambos, é encarregado de fazer o último retrato de Churchill–, reservam em sua psicologia quantidades iguais de coerência e de imprevisto.

Sim, há os noivados, os palácios, os bailes, as joias e vestidos. Mas não é por acaso que esse seriado traz um objeto –a coroa– e não o nome de Elizabeth no seu título. O maior tema de "The Crown" é a despersonalização a que ela e muitos à sua volta se submetem, por força dos costumes e da alta política.

Para um brasileiro que acompanha, por exemplo, as rodadas de baiana que volta e meia acontecem no Supremo Tribunal Federal, esse mundo britânico é tão admirável quanto aterrorizante. Fica-se diante de um mecanismo estranhíssimo, cruel, ao mesmo tempo útil e estúpido, lógico e sem sentido. É a matéria, por certo, das grandes tragédias –e de alguma comédia também.


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