Folha de S. Paulo


A moda agora é dizer que desigualdade social não tem tanta importância

Luli Penna/Folhapress
Ilustração Marcelo Coelho de 4.out.2017
Ilustração Marcelo Coelho de 4.out.2017

Como quase todo mundo, fiquei surpreendido ao saber que a desigualdade de renda não diminuiu durante os anos Lula. O jornalista Clóvis Rossi era dos pouquíssimos a insistir num fato ignorado pelas pesquisas disponíveis na época.

Dizia-se, com base nos levantamentos do IBGE, que os 10% mais ricos estavam com rendimentos encolhendo, e que os 50% mais pobres tinham aumentado sua participação no bolo da riqueza nacional.

O problema é que aquelas pesquisas não mediam toda a riqueza dos mais ricos. Como esses levantamentos são feitos pelo velho sistema de bater de porta em porta, perguntando às pessoas quanto elas ganham, as informações eram incompletas.

Não é que os ricos escondam voluntariamente o total de seus rendimentos. Isso até pode acontecer, por algum resquício de pudor social, por medo de sequestro ou prudência face ao fisco.

A causa principal tende a ser outra: pouca gente sabe direito quanto ganha por mês num fundo de investimentos, ou quanto deixa de perder simplesmente pelo fato de não pagar aluguel.

Agora surgem novos levantamentos, feitos segundo um método diferente. Baseando-se nos dados do Imposto de Renda (e olhe que há provavelmente muita sonegação disfarçada), o economista irlandês Marc Morgan revelou que, durante os anos Lula, a diferença entre ricos e pobres continuou praticamente a mesma.

Era difícil acreditar nisso. Saltava aos olhos o quanto os pobres melhoraram de vida naqueles tempos. O jumento foi substituído pela motocicleta nos cafundós do interior. Investia-se em melhorias nas casas de favela. O porteiro ou o zelador do prédio abandonaram viagens de ônibus em visitas familiares ao Nordeste, podendo pagar passagem de avião.

Sim, porque a riqueza geral tinha aumentado. Os salários dos mais pobres subiram de fato. Só não se sabia que a classe alta não perdera nada enquanto isso. Ou seja, a desigualdade continuou escandalosa.

Ocorre um curioso fenômeno ideológico depois das revelações do economista irlandês. A direita liberal agora se alia aos defensores do lulismo para dizer que, ora, ora, a desigualdade não tem tanta importância assim.

É nessa linha que vai a entrevista de Ricardo Paes de Barros, na edição que a "Ilustríssima" dedicou ao tema, no domingo passado.

"Se a proporção da renda apropriada pelos 50% mais pobres aumentou, não estou nem aí para o que aconteceu com a metade mais rica da população", diz o economista. "Um real a mais para o pobre vale muito mais do que um real a mais para o rico. Isso é o que importa."

Até certo ponto, não está errado o que ele diz. Vou até um pouco além. Quando o pobre passa a viajar de avião, mesmo que persistam enormes diferenças de renda, a "sensação de igualdade" é maior.

Os espaços ficam menos segregados; os hábitos de consumo (tênis Nike, perfume Boticário) se equalizam; podemos todos, em alguns aspectos, conversar de igual para igual.

Qual o problema, então, da desigualdade? Acho um problema gravíssimo. Não falo de um ponto de vista moral, embora eu tenha boas doses de sentimento de culpa nesse campo.

O problema, a meu ver, é principalmente econômico. Uso a própria frase de Ricardo Paes de Barros: "um real a mais para o pobre vale muito mais do que um real a mais para o rico".

Por isso mesmo, torna-se importante tirar –insisto, tirar–dinheiro dos ricos, por meio de impostos mais pesados. Afinal, se um real a mais não tem importância alguma a eles, podemos dizer que um real a menos tampouco lhes fará diferença.

A vida de um rico não se altera significativamente se, em vez de passar 15 dias na Europa num hotel cinco estrelas, ele tiver de passar 12 dias num hotel quatro estrelas. Em vez de comprar um cachorro de raça por R$ 4.000, poderia adotar um vira-latas sem ficar especialmente infeliz por isso.

O número dos sapatos que tenho no armário poderia diminuir pela metade, fazendo com que uns cinco ou dez pobres aumentassem em 100% a quantidade de sapatos que possuem.

Ou seja, a mesma quantidade de bens pode produzir mais felicidade geral quando redistribuída. É menos uma questão de moral do que de racionalidade, a meu ver. Mas devo estar na minoria quanto a essa questão.


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