Folha de S. Paulo


'Tchékhov É um Cogumelo' encena clássico com grande apuro visual

Luli Penna/Editoria de Arte/Folhapress

Há muitas e boas receitas para fazer uma peça de teatro não dar certo. Uma delas, sem dúvida, é projetar filmes e vídeos no palco.

As imagens em geral ficam péssimas, a iluminação de cena atrapalha, os atores se superpõem à tela, e a mistura de linguagens tira o efeito que cada uma, isoladamente, poderia produzir.

Felizmente, nada deu errado em "Tchékhov É um Cogumelo", espetáculo de grande apuro visual dirigido por André Guerreiro Lopes, do Estúdio Lusco-Fusco, em cartaz no Sesc Consolação até dia 8 de outubro.

No teatro completamente escuro, vemos projetada uma imagem indistinta, que a princípio parece ser a nuvem de uma explosão atômica.

Na verdade, estamos vendo imagens eletrônicas do cérebro do diretor, que se conectou com um computador em cena e entrou em estado de meditação.

Loucurada? Nem um pouco. Tudo é organizadíssimo, claro e simétrico nesta peça, em que Helena Ignez, Michele Matalon e Djin Sganzerla encarnam as "três irmãs" do clássico de Anton Tchékhov (1860-1904).

Mas vamos com calma. Há muitas camadas de sentido no espetáculo, que, apesar de curto (80 min), procede sem atropelo.

Tchékhov é encenado com frequência no Brasil. Como retrata a pasmaceira, o tédio, a angústia da classe privilegiada na Rússia, pouco tempo antes das revoluções que iriam abalá-la, sempre existe a tentação de fazer um paralelo com a situação brasileira, em que os horizontes políticos volta e meia parecem fechar-se na indiferença e na inatividade.

Isso é o que se sente agora, e se sentia provavelmente em 1972, quando José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi preparavam uma montagem de "As Três Irmãs". No dia da estreia, abriu-se um desentendimento estético entre os dois.

Surge outra projeção no palco do Sesc: trata-se de um vídeo, feito há mais de 20 anos, com a entrevista que José Celso concedeu ao diretor de "Tchékhov É um Cogumelo". André Guerreiro Lopes, ainda estudante na época, ouve uma delicada explicação sobre o que aconteceu naquela noite de estreia.

Rompera-se, diz José Celso, o círculo de afetos que sustentava a companhia teatral. Ele se encaminharia mais e mais para a ideia de um teatro "sagrado", em que a cena conclamasse poderes misteriosos de transformação –aqueles que a Revolução Russa negligenciou, fracassando por isso.

O autoconhecimento pelas drogas, o xamanismo, a forças da natureza e do sobrenatural agiriam por mecanismos a que o "teatro profano" –o defendido pela outra metade da companhia– seria incapaz de ter acesso.

Seria possível apostar, agora, numa montagem de "As Três Irmãs", depois do espetáculo que se frustrou nos anos 1970?

De tanto que já se montou Tchékhov no Brasil, não valeria a pena repetir a mesma ideia –russos ou brasileiros sofrendo no ócio às vésperas da convulsão.

No Sesc, reduziu-se a peça a algumas falas essenciais, recitadas num jogral preciso pelas três personagens principais. Não é por acaso que, com 40 e 20 anos de diferença de idade, as atrizes pareçam de fato irmãs.

É que, entre 1970 e 2017, o tempo de certa forma não passou; pelo menos, nenhuma revolução aconteceu. Em vez de encenar de novo uma profecia, montou-se a memória dessa profecia –aquilo que sobra da peça na cabeça do espectador, depois de um bom tempo sem vê-la.

O tempo não passa, diz o programa de "Tchékhov É um Cogumelo", citando um sábio budista do século 13. O tempo não "foge": está dentro de nós.

Na peça, as irmãs imaginam que, depois de uma vida obscura, serão esquecidas para sempre. Todavia, renascem em cada montagem que se faz do texto.

Essa perpetuação depende, se quisermos falar como budistas, de uma "anulação do eu": diretor e atrizes se deixam levar pelo transe do tempo cênico.

Em que medida, entretanto, esse ideal pode se conciliar com o imperativo, tão pouco budista e tão revolucionário, do desejo? Querer ou não querer, eis a questão. Não sei se a peça resolve esse problema.

Arrisco, entretanto, uma hipótese geral. É sempre tão difícil montar uma peça, nas condições de hoje, que a dimensão da utopia parece ter-se desligado de qualquer projeto político mais amplo. A energia e a esperança se voltam para o objetivo de fazer o próprio espetáculo.

"As Três Irmãs", a peça que não se fez, torna-se o tema do espetáculo em cartaz no Sesc: belíssimo, alusivo, tchekhoviano, na sua névoa de irrealidade, de memória e de projeto.


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